Cultura, Memória

‘Ainda Estou Aqui’: ‘A gente festeja um Oscar, mas é uma denúncia de assassinato’, diz filha de Rubens e Eunice Paiva

Leandro Prazeres – Da BBC News Brasil em Brasília

Em 27.02.2025

No domingo (2/03), milhões de pessoas em todo o Brasil e no mundo vão voltar suas atenções à premiação do Oscar. Entre os brasileiros, as expectativas estão em torno da possibilidade de o filme “Ainda estou aqui” vencer alguma das três categorias para as quais ele foi indicado, feito inédito no cinema brasileiro.

Entre os torcedores mais conhecidos do filme está uma das principais personagens da história que deu origem ao filme: Eliana Paiva, 70. Ela é uma das cinco filhas do deputado federal cassado Rubens e de Maria Eunice Paiva, personagem principal da obra, e que, assim como a mãe, foi detida pela ditadura militar logo após a prisão do pai.

Mas apesar de todo o frenesi pela inédita tripla indicação ao Oscar, Eliana disse à BBC News Brasil que sente um misto de sentimentos em torno do filme e da repercussão que ele está tendo às vésperas da premiação considerada mais importante do cinema mundial.

“A gente festeja um Oscar e está achando tudo muito bom em termos de denúncia, mas antes de qualquer coisa, é a denúncia de um assassinato brutal dentro de um quartel de Exército no Brasil. Do que a gente está tratando é de um assassinato”, disse Eliane Paiva.

Para a filha de Rubens e Eunice Paiva, é importante que as pessoas não percam a dimensão de que o filme também tem o objetivo de jogar luz sobre o período da ditadura militar, que governou o Brasil entre 1964 e 1985, um período marcado por perseguição a militantes de esquerda, prática de tortura e desaparecimentos forçados como o do seu pai. Ela acredita, no entanto, nem todas as pessoas que estão assistindo o filme se darão conta disso.

“Nem todo mundo vai se dar conta de que foi um assassinato bárbaro e nem todo mundo vai querer ver que foi um assassinato. O mundo é o mundo e tem pessoas de todos os tipos. Mas o fato é que ele foi barbaramente espancado e depois disso houve a morte”, disse.

Eliana Paiva usando cachecol com a imagem do seu pai ao fundo em uma tela

Crédito,Arquivo pessoal

Legenda da foto,Eliana tinha 15 anos quando seu pai foi levado de casa por agentes da ditadura

‘Acho que mataram o Rubens’

À BBC News Brasil, Eliana disse que levou algum tempo para que ela passasse a entender que seu pai havia sido vítima de um assassinato. Quem a ajudou nesse processo, ainda que de forma involuntária, foi sua mãe.

“Estava tentando me lembrar quando foi que a Eunice começou a ter certeza de que o papai estava morto. E lembro que, num dia, ela estava dando uma entrevista ou apenas conversando com alguém e ela soltou uma frase: ‘Acho que mataram o Rubens’. Foi essa a frase que ela usou. Pra mim, naquele momento, aquilo pareceu quase normal porque, afinal, era isso mesmo que tinha acontecido”, disse.

Segundo ela, essa frase foi dita dois anos após o desaparecimento de seu pai e em meio à ausência de informações oficiais sobre o paradeiro de Rubens Paiva.

Eliana disse, no entanto, que apesar do tom de naturalidade, ouvir a mãe falando aquilo pesou sobre aquela adolescente de 17 anos de idade.

“O que houve foi um assassinato, mas para as pessoas diretamente envolvidas como minha mãe, meus irmãos e eu, isso foi algo que foi sendo concebido aos poucos. Tudo dentro dessa frase: ‘Acho que mataram o Rubens'”, disse Eliana.

Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), o deputado federal cassado Rubens Beyrodt Paiva foi morto sob custódia do Estado brasileiro, após ser preso, torturado e submetido a maus-tratos nas dependências do Destacamento de Operações de Informações do I Exército (DOI) no Rio de Janeiro, em janeiro de 1971. Seu corpo nunca foi encontrado.

O relatório da CNV diz que a versão oficial divulgada pelo Exército – de que Paiva teria fugido após um suposto resgate por “terroristas” – foi forjada para encobrir o crime.

Apenas em 1996 é que Eunice Paiva conseguiu, finalmente, obter a certidão de óbito de Rubens Paiva. Em 2025, em meio à repercussão em torno do filme, a certidão foi alterada pelo Estado brasileiro e passou a trazer uma nova explicação para a morte do ex-deputado.

“(Causa) não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”, diz um trecho do documento.

Na versão anterior, Rubens Paiva aparecia apenas como desaparecido desde 1971. O filme “Ainda estou aqui” é baseado no filme de mesmo nome escrito pelo filho de Rubens Paiva, o escrito Marcelo Rubens Paiva.

As obras narram o drama vivido pela família Paiva, especialmente por Maria Eunice Paiva, para lidar com o desaparecimento do ex-deputado e a sua luta em busca de informações e pelo reconhecimento de que seu marido foi uma das vítimas da ditadura militar.

O filme foi indicado ao Oscar em três categorias: melhor filme, melhor filme internacional e melhor atriz, com a indicação de Fernanda Torres, que interpreta Eunice Paiva.

Apesar de toda a repercussão do filme, ninguém chegou a ser punido pelo desaparecimento e morte de Rubens Paiva. Em 1979, nos últimos anos da ditadura militar, o Brasil aprovou a Lei da Anistia, que vem impedindo o julgamento de agentes do Estado suspeitos de terem participação de crimes politicamente motivados durante o período de exceção.

Cena do filme "Ainda estou aqui" em que a atriz Fernanda Torres olha pela janela de um fusca para fora com a luz do sol tocando seu rosto

Crédito,SONY PICTURE CLASSICS

Legenda da foto,Eunice Paiva, personagem interpretada por Fernanda Torres, lutou para que a morte de seu marido fosse reconhecida pelo Estado brasileiro

Prisão, capuz e catarse

Eliana Paiva aparece no filme dirigido por Walter Salles e protagonizado por Fernanda Torres em diversos momentos.

Um dos mais importantes é quando ela é levada juntamente com sua mãe para um quartel do Exército onde ela é interrogada.

Ela ficou um dia presa, separada da mãe. No dia seguinte, ela é posta em liberdade e acolhida por amigos da família.

Eliana Paiva fala com carinho de Walter Salles e de Fernanda Torres, a quem chama de “Fernandinha”.

Ela também disse comemorar o tamanho do público que o filme alcançando. Os dados mais atualizados apontam que pelo menos cinco milhões de pessoas que assistiram o filme no Brasil.

Segundo ela, ainda que nem todas os espectadores do filme consigam ver que a obra giraria em torno de um assassinato, ela diz acreditar que uma das missões do filme é sensibilizar o público sobre a história recente do Brasil.

“O filme existe para melhorar a memória social e política do Brasil, quando as pessoas não entendem mais o que aconteceu naquela época. As pessoas conseguem ver o que acontece ali: o desaparecimento de um pai de família quando o casal era felicíssimo e a família, por conseguinte, também era feliz”, disse Eliana.

Eliana disse acreditar que é preciso ter alguma familiaridade com temas como política, história e direito pra entender a mensagem do livro.

“O público chegou a cinco milhões de pessoas e é muito vasto. Vai desde o Lula (presidente Luiz Inácio Lula da Silva-PT) até a arquiteta que está trabalhando por aqui. esde deputados até o Lula, que viu com meus sobrinhos e que deve entender as questões políticas, até uma moça de 35 anos que entende (o filme) como algo sobre uma família cujo provedor desapareceu em circunstâncias negativas e traumáticas”, disse.

Na avaliação de Eliana, que é jornalista aposentada e ex-professora de jornalismo em universidades, o filme tem ressoado junto ao público por conta da identificação que as pessoas vêm conseguindo fazer consigo mesmas.

“O filme existe para que as pessoas se divirtam. A Fernandinha gosta de dizer que a tragédia da família tem relação direta com a tragédia grega. O que acontece em cena é uma catarse. O que as pessoas estão indo ver é uma catarse”.

Imagem destaque – Reprodução Web

O que você achou desse conteúdo?

Discover more from

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading