Jesse Owens: o atleta negro que desafiou Hitler e a sociedade estadunidense
ICL Notícias
Em 12.03.2025
Racismo, superação e repercussão histórica – como Owens influenciou gerações de negros no esporte através da sua vitória olímpica.
Em meio ao avanço do fascismo e da intolerância racial, o atletismo se tornou palco de um dos maiores desafios à ideologia nazista. Jesse Cleveland Owens, um atleta negro estadunidense, escreveu seu nome na história ao conquistar quatro medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de 1936, realizados em Berlim, sob os olhos de Adolf Hitler e do regime que pregava a supremacia da raça ariana.
Vamos entender quem foi Jesse Owens, qual foi sua contribuição para a história do atletismo, como simplesmente ser quem ele era foi suficiente para desafiar o nazismo e a segregação racial que existia nos Estados Unidos na época.
Quem foi Jesse Owens?
Neto de escravos, James Cleveland Owens nasceu em 12 de setembro de 1913, em Oakville, Alabama (EUA), sendo o mais novo de dez filhos. Aos nove anos, sua família se mudou para Ohio como parte da Grande Migração – movimento no qual cerca de 1,5 milhão de negros deixaram o sul segregado dos Estados Unidos.
Ao ingressar na nova escola, apresentou-se como “JC”, suas iniciais, mas seu forte sotaque do sul fez com que o professor entendesse “Jesse”. Tímido demais para corrigir o erro, acabou adotando o novo nome que o acompanharia para o resto da vida.
Jesse teve seu talento descoberto ainda no ensino médio, na Fairmount High School, pelo professor e técnico Charles Riley. A partir de 1930, com 17 anos, passou a se dedicar integralmente ao atletismo e tentou vaga para os Jogos Olímpicos de Los Angeles, competindo nas seletivas dos 100 metros, 200 metros e salto em distância.
Em 1982, uma avenida que leva até o estádio Olímpico de Berlim foi renomeada como “Jesse Owens Allee” em sua homenagem. Imagem: Enciclopédia do Alabama
O começo da carreira
Sua grande virada veio em 1933, quando conquistou 75 vitórias em 79 provas e quebrou o recorde mundial das 100 jardas, com o impressionante tempo de 9s40. Nessa época, Owens aceitou uma bolsa da Universidade Estadual de Ohio e competia pela instituição, apesar de não poder morar nos dormitórios porque não aceitavam negros e não poder comer nos restaurantes, porque também não serviam pessoas pretas.
Mesmo com seu talento inquestionável, Jesse Owens enfrentou desafios que iam além das pistas. A bolsa estudantil, que serviria para qualquer outro atleta, não foi suficiente para que ele pudesse pagar aluguel e contas, então além de se dedicar integralmente ao atletismo, ele também precisava trabalhar e estudar.
Mas sua dedicação e paixão pelo esporte falaram mais alto. Três anos depois de ingressar na faculdade, já com 23 anos, Owens não apenas conquistou seu espaço entre os grandes nomes do atletismo, como também foi cotado para representar os Estados Unidos nas Olimpíadas de Berlim.
Ele estava prestes a fazer história e se tornar uma lenda do atletismo.
Na foto, Jesse Owens durante corrida nos Jogos Olímpicos de Berlim. Imagem: Getty Images
Jogos Olímpicos de Berlim
Os Jogos Olímpicos de 1936 foram planejados pelo regime nazista como uma demonstração da “superioridade da raça ariana”, servindo como uma ferramenta de propaganda para o regime nazista.
Na época, tanto Hitler quanto o ministro da Propaganda, Joseph Goebbels, investiram massivamente na organização do evento, transformando os Jogos Olímpicos em um espetáculo que deveria exaltar os valores do chanceler e a grandiosidade do Terceiro Reich. Para você ter uma ideia, Hitler mandou construir estádios novos e usou da última tecnologia cinematográfica para fotografar o evento.
Essa Olimpíada também foi a primeira a ter a tocha olímpica transportada por um revezamento de corredores, um conceito apropriado pelos nazistas para associar sua visão de pureza racial à herança da Grécia Antiga.
No entanto, Jesse Owens, um homem negro dos Estados Unidos, a própria personificação contrária da raça ariana, frustrou essas expectativas ao dominar as provas de atletismo e conquistar 4 medalhas de ouro nos 100 metros rasos, 200 metros rasos, salto em distância e revezamento 4×100 metros.
Sus vitórias não só desafiaram o regime nazista, que esperava que os atletas alemães conquistassem as medalhas, como também demonstraram que o talento e a dedicação são mais poderosos do que qualquer ideologia racista.
No entanto, o desconforto gerado pela presença de um negro no pódio não se limitou à Alemanha nazista. Nos Estados Unidos, Owens também enfrentou a frustração daqueles que não comemoram sua vitória, movidos pelo mesmo sentimento – o racismo.
Jesse Owens no pódio dos Jogos Olímpicos de Berlim ao lado de Luz Long. Imagem: Getty Image
Jesse Owens e Luz Long
Ao longo das competições durante a Olimpíada, a amizade entre Owens e o alemão Luz Long foi um escândalo na época. Em 1936, Owens e Long se enfrentavam nas eliminatórias do salto em distância quando o alemão, percebendo as dificuldades de Owens, se aproximou e sugeriu que ele fizesse uma marca antes da área limite para que pudesse dar um salto com mais segurança.
Jesse Owens seguiu a orientação e conseguiu garantir sua vaga na final, onde enfrentou uma disputa acirrada. No final, como sabemos, ele venceu novamente e conquistou a segunda de suas quatro medalhas de ouro nos Jogos de Berlim.
O gesto de Long ao ajudar Owens na prova do salto em distância tornou-se um marco do espírito esportivo e um exemplo de “fair-play” comentado até os dias atuais.
Graças à robusta equipe de fotógrafos de Hitler, existem diversos registros da amizade entre Owens e Long. Na foto, ambos estão no gramado esperando os jogos começarem. Imagem: reprodução
As repercussões da vitória de Owens
A vitória de Jesse Owens nas Olimpíadas de Berlim em 1936 teve um impacto profundo, tanto no cenário esportivo quanto no movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos.
Ao derrotar a narrativa nazista de supremacia racial e conquistar quatro medalhas de ouro, Owens se tornou um símbolo da força e da resiliência da comunidade negra. No entanto, apesar do reconhecimento internacional e aplausos do público que assistia suas vitórias durante os jogos, sua recepção nos EUA foi marcada pelo racismo estrutural da época.
Owens não foi parabenizado pelo então presidente Franklin D. Roosevelt, e, ao retornar ao país, também não recebeu as honrarias que outros atletas olímpicos receberam.
Porém, em 1982, Owens retornou a Berlim para ser homenageado, tendo uma avenida renomeada como “Jesse Owens Allee” e consolidando o reconhecimento que lhe havia sido negado por tanto tempo. Não só isso, hoje em dia nos Estados Unidos existem diversos espaços que o homenageiam, como o Jesse Owens Memorial Stadium, em Ohio, e escolas e parques dedicados à sua memória.
O Jesse Owens Memorial Stadium é um estádio com capacidade para 10.000 pessoas e abriga as equipes masculinas e femininas de futebol e atletismo da Ohio State University. Imagem: Wikipedia.
O legado de Owens
A trajetória de Jesse Owens sem dúvida abriu caminho para muitos outros esportitasnegros que vieram depois.
Nas décadas seguintes, atletas como Wilma Rudolph, a primeira mulher negra a ganhar três medalhas de ouro em uma única Olimpíada, seguiram os passos de Owens e ajudaram a pavimentar o caminho para as novas gerações. Já Tommie Smith e John Carlos, ao levantarem o punho em um gesto do “Black Power” no pódio dos Jogos de 1968, transformaram o esporte em um símbolo de resistência e empoderamento da comunidade negra.
Outros grandes nomes também ajudaram a consolidar esse legado. Carl Lewis, considerado um dos maiores velocistas e saltadores da história, conquistou nove medalhas de ouro olímpicas entre os anos 1980 e 1990, reforçando a presença dominante de atletas negros no atletismo mundial.
Muhammad Ali, considerado uma lenda do boxe, além de campeão mundial, usou sua fama para enfrentar o racismo, denunciar o sistema e defender os direitos dos negros nos EUA. Já Serena Williams revolucionou o tênis feminino, quebrando recordes e desafiando padrões em um esporte tradicionalmente elitista e predominantemente branco.
É preocupante ver o ressurgimento de símbolos associados ao racismo e ao nazismo. Durante a posse do presidente estadunidense Donald Trump, em 2025, diversas personalidades influentes fizeram gestos associados ao nazismo, e muitos continuam a repeti-los, negando qualquer relação com a saudação “Heil Hitler”, apesar da clara semelhança.
Diante disso, é fundamental que histórias como a de Jesse Owens continuem a ecoar em nossa sociedade, lembrando que não há espaço para retrocessos – racismo, preconceito, nazismo, xenofobia e qualquer forma de discriminação social precisam ser repudiados com veemência.
Imagem destaque: Getty Images