A estética do liso como desfiguração do belo

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 29.07.2020

Vivemos um momento muito mais de adaptabilidade e de ausência de resistência do que de transgressão emancipatória. Adaptar é uma forma desumanizante de se referir a seres humanos, pois expressa uma coisificação do ser, uma objetificação do humano, como se pudéssemos no ajustar, numa espécie de justaposição, a qualquer outra coisa ou situação. Adaptar não é da condição humana, mas de coisas e objetos. Por isso, muito me assusta quando vejo outdoors em letras garrafais anunciando que determinada instituição de ensino propõe uma formação educacional para adaptar os estudantes ao mercado de trabalho ou coisa parecida. É como se estivéssemos vivenciando um anestesiamento coletivo em que se rompe qualquer possibilidade de questionamento ou contraposição ao socialmente estabelecido. Assim, elimina-se também qualquer possibilidade de negatividade. A negatividade é imprescindível para a transgressão emancipatória.

Para o filósofo Byung-Chul Han – ver Sociedade do Cansaço (Editora Vozes, 2017) – vivemos numa sociedade do desempenho marcada pela positividade, em contraposição à sociedade disciplinar, marcada pela negatividade, que é da vigilância e da punição, de acordo com Foucault, da qual estamos nos distanciando cada vez mais. A positividade, para Han, elimina a instância dominadora e de controle e estabelece uma condição de vida marcada pela liberdade e autonomia do sujeito sobre si mesmo. Nesse modelo, o sujeito se desprende da negatividade de obedecer às ordens de outrem. No entanto, a ideia de positividade aqui não estabelece um sentido de bem-estar ou favorecimento das humanidades do sujeito, mas de exploração de si, na medida em que toda a responsabilidade de desempenho e produção passa a ser somente sua. A positividade representa novas formas de violências mais sutis e mais eficazes e é própria da sociedade do desempenho.

A estética do liso é algo novo, fruto da contemporaneidade e é um fenômeno da sociedade do desempenho. A estética do liso se evidencia na positividade e por isso reconfigura o belo, desfigurando-o. O mundo do liso, nos dias atuais, é acima de tudo o mundo do belo, pois elimina toda forma de negatividade, é desprovido de senso crítico e não é questionador. É polido. É o mundo da positividade, por isso é marcado também pelo consumo. De acordo com Byung-Chul Han, o mundo do liso é “da pura positividade, no qual não há dor, ferimento nem culpa” (A salvação do belo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019, p. 14). Para Han (2019), o smartphone representa bem essa estética do liso, pois cada vez mais ele é adaptável às preferências de consumo e uso, na medida em que vai se tornando polido em suas formas, pois já existem no mercado modelos maleáveis e flexíveis e com capas inquebrantáveis e autorregenerativas, capazes de continuar polidos, mesmo que sofram arranhões e riscos. Essa condição de ser adaptável e não oferecer resistências, segundo Han, é uma característica da estética do liso. Além do mais, o smartphone corporifica a comunicação do liso, do polido no mundo digital, pois se estabelece essencialmente pela troca de likes e curtidas. É sempre marcado pela positividade, nunca pela negatividade.

É próprio do liso eliminar a distância e, dessa forma, tudo passa a ter o imediatismo do toque. Por isso, o tato surge como o sentido predominante e determina as ações que vão marcar as preferências e as vontades de cada pessoa. Desse modo, o liso está bem estetizado pelo touch. A touchscreen é plana, lisa, não tem ondulação e é nela que se materializa o mundo digital (HAN, 2019), em que likes e curtidas se sobressaem como a plenitude da reciprocidade: curte-se para ser curtido. Basta penas um toque para determinar a nossa capacidade de consumir e de gostar. A palavra gostar vem de gustare em latim, que significa sentir sabor, gostar. Em inglês, representada pelo verbo to like.

Desse modo, cada curtida representa um like e também uma sensação de saciedade, pois proporciona certo prazer que preenche vazios interiores que são ocupados através de aparentes demonstrações de carinho, apreço, predileção. Tudo isso apenas em um toque. Han diz que “curtindo, os humanos se encontram apenas ainda em si mesmos” (2019, p. 42). Aquela distancia necessária e fundamental que marca a condição existencial do outro e estabelece uma relação de interdependência entre os seres humanos é eliminada. O toque suprime a distância e despresentifica a condição existencial das pessoas porque dissolve o diálogo e possibilidades de subjetivação do humano. Como afirma Han (2019), “A visão guarda distância, enquanto o tato a suprime. Sem distância não é possível haver mística. A desmistificação torna tudo fruível e consumível. O tato destrói a negatividade do totalmente outro”.

O risco de introjetar uma autossuficiência, em que cada pessoa passa a contar apenas consigo mesma para vivenciar a sua existência, numa espécie de eu basto apenas em mim e por mim mesmo, é a decretação da morte da alteridade. Desse modo também eliminamos a ética como princípio condutor da convivência humana. Confirmamos, dessa forma, o prenúncio de uma sociedade absolutamente narcísica e indiferente ao estranho. Esse estilo autorreferencial, em que o sujeito reconhece apenas a si mesmo, gera uma espécie de amor próprio às avessas, que vai consumindo o sujeito no seu interior e, ao mesmo tempo, eliminando suas referências exteriores de convivências e de humanidade. Nasce então um tipo de interiorização de si, que desvirtua o sentido desse amor próprio, fruto desse amar a si mesmo, tornando-o viciante e mórbido, porque elimina qualquer possibilidade do encontro dialógico que presentifica a existencialidade de cada um com o outro.  Essa autossuficiência é corrosiva e gera adoecimentos.

O liso retira a vestimenta do belo e, assim, retira também a sua essência. Despe-o e o empobrece. A riqueza e a magia do belo na arte é o seu velamento. É a sua capacidade de se ocultar e de se metaforizar. É próprio do belo o seu potencial de habitar os escaninhos e não se explicitar. A beleza da arte esconde-se para manter a magia da sua criação e por isso sua essência está na sua forma, no seu vestir-se. Um poema é tão mais belo quando oculta a sua essência na sua vestimenta para dizer sem dizer. A estética do liso escancara o belo no mundo digital e, dessa forma, transforma-o em produto de fácil consumação, decreta-lhe um imediatismo e uma permanente efemeridade que se expressa entre likes e curtidas (HAN, 2019). O liso é plácido, sem resistência, por isso ele transforma o belo em mero atrativo para comercialização, como faz a indústria da beleza. Cria uma cultura consumista e submete o belo a uma fluidez que faz com que o belo se adapte sempre ao que será determinado pelo modismo fabricado para vender. “O belo vira liso e submete-se ao consumo” (HAN, 2019).

Por isso, é necessário recuperar o belo que faz vivificar o incondicional encontro que fortalece laços, ilumina vidas, reconhece-se na diversidade e faz brotar o amor.

Mas o belo que escapa a essa estética do liso é o belo que resguarda uma negatividade suficiente para resistir, para não se diluir aos caprichos do consumo desmedido e sem cerimônia. Para Han, “a negatividade é a força viva da vida. Ela forma também a essência do belo” (2019, p. 67). O belo que foge à logica do mundo digital, aonde impera a estética do liso, é o belo que interage com o outro e por isso estabelece um espaço de alteridade em que prevalece a diversidade. No belo natural não acontece a eliminação do distanciamento, típico do belo no digital, por isso, há prevalência do encontro, do reconhecimento do outro e da sua solidez e perenidade. O belo afirma a outridade como prevalência do necessário encontro, que não se realiza em likes e curtidas, próprias do mundo digital e do belo que se corporifica pela estética do liso. Por isso, é necessário recuperar o belo que faz vivificar o incondicional encontro que fortalece laços, ilumina vidas, reconhece-se na diversidade e faz brotar o amor.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação, membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

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