É que Narciso acha feio o que não é espelho (ou tramas da sociedade do esgotamento)

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 05.08.2020

A música foi gravada no álbum “Muito – dentro da estrela azulada” (Polygram), de Caetano Veloso, em 1978. Falo de Sampa, música que faz uma homenagem a São Paulo e que retrata o espanto do compositor ao chegar naquela cidade. Os versos da música mostram bem a estranheza do eu-poético em lidar com o diferente e não deixam de expressar um sentimento de rejeição ao novo e ao estranho. Os versos seguintes marcam bem esse entendimento: “Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto / Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto / É que Narciso acha feio o que não é espelho”. Os versos também apontam para uma necessidade da alteridade como possibilidade do eu-poético se integrar, interagir e dialogar com esse mundo de estranhezas e de novidades e, dessa forma, enxergar o outro que não ele mesmo.

O mito de Narciso e Eco, uma das mais conhecidas histórias da mitologia grega, metaforiza com vigor um ambiente em que a alteridade é radicalmente anulada e de como esse fato aniquila a condição dos sujeitos, na medida em que gera adoecimentos no interior humano e distúrbios que comprometem a alma e o caráter, levando-os a uma condição de isolamento, muitas vezes, extremo e uma consequente degradação de si. O mito conta a história de Narciso, filho da ninfa Liríope e do deus-rio Céfiso. Ao nascer, devido à sua beleza estonteante, que só poderia se comparar à beleza das divindades, e isso poderia ser motivo de punição pelos deuses, fez com que a sua mãe, preocupada, procurasse o sábio Tirésias, que podia prever os acontecimentos futuros. Tirésias afirma que Narciso teria vida longa, desde que não visse o seu próprio rosto.

Eco era uma bela ninfa que vivia acompanhando a deusa Diana em suas caçadas campestres e tinha como mania falar demais. A deusa Hera, esposa de Zeus, desconfiando que seu marido a traía com as ninfas, saiu a sua procura, mas foi distraída por Eco, que a mando de Zeus se incumbiu de distrair Hera, o que permitiu que as ninfas fugissem antes da sua chegada. Ao perceber tal artimanha, Hera castiga Eco, condenando-a a falar apenas as últimas palavras que a partir de então ouvisse. Com estas palavras Hera pune Eco: “- só conservarás o uso dessa língua com que me iludiste para uma coisa de que gostas tanto: responder. Continuarás a dizer a última palavra, mas não poderás falar em primeiro lugar” (Bulfinch, Thomas. O livro de ouro da mitologia (a idade da fábula): histórias de heróis e deuses. Rio de Janeiro. Ediouro, 2002).

Vendo tamanha insensibilidade e desprezo, as ninfas pediram a deusa da vingança que punisse Narciso, que atendendo ao pedido, fez acontecer, certo dia, um intenso calor na terra.

Narciso vivia a caçar nos bosques e montanhas. Certo dia, ao vê-lo, Eco fica encantada, apaixona-se imediatamente e passa a seguir seus passos. Mas não podendo falar primeiro, tem que aguardar um momento propício para poder respondê-lo. Num certo dia, tendo-se perdido e percebendo passos próximos de si, Narciso pergunta: – tem alguém aqui? E como resposta de Eco, ouve apenas: – aqui.  Seguem outras perguntas e respostas, sempre repetindo as últimas palavras. Ao se encontrarem, Eco espera ser enlaçada nos braços de Narciso, que a rejeita veementemente, do mesmo modo que já rejeitara tantas outras ninfas. Envergonhada pela rejeição tão fria de Narciso, Eco se isola nas cavernas por entre os rochedos das montanhas e aos poucos, sem se alimentar, vai definhando até que seus ossos se transformam em rochedos e dela sobra apenas a sua voz. Vendo tamanha insensibilidade e desprezo, as ninfas pediram a deusa da vingança que punisse Narciso, que atendendo ao pedido, fez acontecer, certo dia, um intenso calor na terra.

Nesse dia, após uma caçada, Narciso está extenuado, com muito calor e sede. Vai até um lago de águas muito límpidas e ao se debruçar para matar a sua sede, depara-se com a sua própria imagem e, seduzido pela beleza, apaixona-se por si mesmo. Tentou beijar e abraçar a bela imagem no lago, mas sempre que fazia esse movimento, a imagem fugia e só voltava em seguida. Debruçado sobre as águas, Narciso se esquece de alimento e de repouso e, definhando, fica ali até a sua morte. Em seu lugar encontraram uma flor roxa com folhas secas, que passou a ter o nome de Narciso (BULFINCH, 2002). Em outa versão, Narciso morre afogado. Por sua perspectiva autorreferenciada, centrada em si mesmo, Narciso é incapaz de experenciar uma vivência baseada na interdependência com outras pessoas, condição que o leva ao isolamento e a consequente morte.

Assim, como Narciso, o sujeito do desempenho está fadado a um processo de autodestruição, pois jamais se sente preenchido em suas angústias e necessidades que ele mesmo impõe a si próprio. Está permanentemente insatisfeito e é tomado de um vazio sem fim. No dizer de Han (HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017), “o sujeito de desempenho se realiza na morte” (p. 86). Isso porque o narcisista não está disponível a vivenciar experiências relacionais com quem quer que seja. Ela está cada vez mais trancado em si mesmo.

O sujeito do desempenho é aquele que, vivenciando a realidade da sociedade do esgotamento, encontra-se num estado de desgaste de si mesmo tão alto, que já não tem paciência para lidar com os seus semelhantes, que não consegue mais conviver alegremente com a família, que não tem mais capacidade de confiar em outras pessoas, que não encontra prazer nas coisas que não expressam alguma forma de lucro, que não consegue mais lidar com as coisas de si mesmo porque se sente esgotado e sem estímulo para reagir. Por isso vai sucumbindo em si mesmo, de forma doentia e perigosa, pois quase sempre, o resultado é um processo penoso de depressão.

O adoecimento narcísico, muito próprio da sociedade do desempenho, é fruto de um processo de autoexploração que vai minando a capacidade de resistência do indivíduo, até chegar a um ponto em que não se tem mais força para reagir. Essa situação leva a um esgotamento tão intenso de desgaste mental e físico que o sujeito se entrega, pois não vê mais razão de continuar lutando consigo mesmo e ao seu favor. A sociedade do desempenho gera uma sociedade do esgotamento porque, acima de tudo, exige de cada indivíduo que gere resultados capazes de incrementar cada vez mais a produção e o valor utilitário dela. Para isso, é necessário estabelecer um campo de positividade capaz de gerar autonomia e liberdade que vão dar condições de tornar os sujeitos senhores de si mesmos, para que “livremente” possam produzir mais e mais. Essa sensação de que o sujeito só deve satisfação a si mesmo, pois ele passa a ser seu próprio patrão, é a estratégia mais sutil e eficiente para gerar o processo de autoexploração.

O sujeito de desempenho explora a si mesmo, até consumir-se completamente”. Esse é o momento mais crítico para a pessoa, pois é nesse momento que começa a se evidenciar os sintomas de angústia e de depressão.

O sujeito da sociedade do esgotamento é, de alguma forma, o sujeito resgatado do Narciso, pois o excesso de autorreferenciamento faz com que se perca a noção do outro, do espaço exterior, e então, esse indivíduo passa a ver apenas a si mesmo. Mas aqui, a situação é mais aguda e perigosa. O sujeito do desempenho, fruto do modelo capitalista, vê em si, e somente em si, a possibilidade de alcançar o tão almejado bem-estar e para isso não mede esforços para produzir, até chegar o momento em que ele, sabendo que o seu concorrente é ele próprio, não consegue mais atingir aquele resultado que ele estabeleceu como meta. É então que surge a sensação de impotência, o sentimento de fracasso. Mas aí ele já se isolou em si mesmo, já se fechou para o outro, já perdeu as conexões com os seus pares, já se distanciou do coletivo. Como afirma Han (2017, p. 101), “a sociedade de desempenho é uma sociedade de autoexploração. O sujeito de desempenho explora a si mesmo, até consumir-se completamente”. Esse é o momento mais crítico para a pessoa, pois é nesse momento que começa a se evidenciar os sintomas de angústia e de depressão.

Ainda citando Han (2017, p. 127), “o hipercapitalismo atual dissolve totalmente a existência humana numa rede de relações comerciais. Já não existe nenhum âmbito da vida que consiga se eximir da degradação provocada pelo comércio. O hipercapitalismo transforma todas as relações humanas em relações comerciais. Ele arranca a dignidade do ser humano, substituindo-a completamente pelo valor de mercado”. Por essa razão, há todo um aparato midiático e ideológico estimulando atitudes individualistas e egocêntricas, aguçando a necessidade de adquirir as competências fundamentais para aprender a competir uns contra os outros, reforçando cada vez mais a necessidade de uma existência fundamentada no ter. A superação desse modelo de degradação da vida exige necessariamente um projeto de educação que, acima de tudo, esteja a serviço da humanização dos seres humanos e que ensine a todos e a todas a grandeza que é aprender a viver juntos.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

Foto destaque: segredosdomundo.r7.com