Piada mortal: quando o humor dissemina o desamor, ou “Isso não tem nada a ver com Gothan City, tem?”
Mário Gouveia Júnior*
Em 14.08.2020
Peço perdão aos aficionados pelo Universo do Cavaleiro das Trevas e de seu arqui-inimigo que podem ter sido atraídos para este pequeno ensaio por conta de seu título, mas o tema de hoje não poderia encontrar melhor definição do que a de uma “piada mortal”. Vamos falar sobre transfobia e como certas brincadeiras inocentes podem contribuir para a disseminação do ódio às inevitáveis diversidades que não se sustentam em nenhuma suposta normalidade.
Em outros momentos, quando mencionamos a naturalidade com que a juventude costuma desejar o novo, abordamos o contexto atual, e a popularização do termo “novo normal”. Tal expressão tem sido evocada quando se quer referir à toda a sorte de procedimentos a serem tomados no tocante a comportamentos sociais e profiláticos em decorrência da pandemia e de suas consequências. Foi nesse particular que almejamos, inclusive, a urgência de se pensar na etimologia da palavra normal, que deriva de norma, regra, padrão.
As normas e regras são criadas coletivamente para que as pessoas possam agir em determinados espaços de modo a se prezar pela boa convivência, ou seja, elas existem para que seja garantido o direito de cada indivíduo, “que termina onde o direito do outro começa”, ainda hoje repete minha sábia mãe.
Mas… e quando a regra, a norma, o normal, ao invés de garantir a boa convivência, acaba segregando pessoas consideradas diferentes? Não vou, por hora, entrar no mérito de falar sobre racismo e sobre como os pretos e pretas periféricos, desde muito cedo, têm sido assassinados mediante procedimentos “equivocados”, sobretudo das forças que representam o Estado. Vidas pretas importam e voltaremos a isso quantas vezes forem necessárias.
Quando tratamos de comportamentos que classificam e marginalizam as pessoas em decorrência de sua condição de gênero ou de sua condição afetiva, inevitavelmente, estamos tratando de uma das faces mais perversas do machismo. Enquanto sistema ideológico, o machismo acaba por fornecer modelos identitários, seja para o masculino seja para o feminino, ao ponto de produzir, sobretudo no meio familiar, mas não exclusivamente, o sentimento de superioridade do macho em relação à fêmea. O machismo deriva do patriarcado e da concepção de que o poder deve estar nas mãos do “mais forte”; uma espécie de darwinismo patriarcal cuja estrutura invisível permeia todos os aspectos e instituições sociais.
O patriarcado como sistema sociocultural emerge a partir da fixação dos primeiros grupos humanos na terra, em especial quando testemunharam as primeiras experiências de acumulação de excedentes do trabalho agrícola, que, por consequência, derivou na legitimação da propriedade privada, da herança e da necessidade de criação de laços familiares que primassem pela passividade e virgindade femininas, por exemplo.
De outro modo, o patriarcado, e por conseguinte o machismo, historicamente exigiram do homem um comportamento que evidenciasse demonstrações de força e virilidade, e ocultações de medos e angústias. Todo aquele que não apresentasse tais características seria relegado à condição de não-macho, e, portanto, subjugado às vontades do “alpha”, uma lógica que se aproxima dos procedimentos de grupos de animais.
As heranças históricas nos trazem até o brevíssimo século XX, como o intitulou acertadamente Eric Hobsbawn. Por essa concepção histórica, um século pode durar mais ou menos do que cem anos. Nesse sentido, se levarmos em conta a existência de dois conflitos mundiais, uma grande crise econômica e os reflexos tardios do fim da escravidão, até o fim da década de 1950, vivemos muitas transformações econômicas, políticas e sociais.
As moças que nasceram até a primeira metade do século XX, em geral, receberam uma formação adequada ao adestramento do chamado sexo frágil. Boas maneiras de pensar e agir conforme os ditames do pai, na ausência deste, do irmão, e depois do marido. Não poucas são as pesquisas da História da Vida Privada que se debruçaram inclusive sobre revistas feitas especialmente para as mulheres aprenderem a defender sua honra enquanto moças solteiras ou enquanto distintas senhoras casadas.
As décadas de 1960 e 70 se configuraram como anunciadoras da necessidade de mudança de mentalidades. O Maio de 68; a Luta pelos Direitos Civis; os manifestos pelo amor livre; pela paz e o fim da guerra do Vietnã; pela efetiva emancipação feminina; e pela democracia no Brasil, são movimentos cuja importância não se pode deixar de mencionar. Muitas dessas lutas se converteram em conquistas das quais desfrutamos hoje em dia. No entanto, a despeito da conscientização dos males que a hegemonia machista engendra na sociedade no tocante à liberdade das pessoas, ainda assim, novas gerações continuaram sendo criadas mediante os preceitos machistas. Isso porque a vigência de paradigmas distintos é algo mais comum do que se possa imaginar. Nesse contexto, podem conviver em uma mesma sociedade valores que se contradizem, inclusive. Um dos sinais clássicos de que uma sociedade se encontra em crise, diga-se de passagem.
Assim, criamos nossas meninas e nossos meninos a naturalizar os papéis de cada um no teatro das tramas e trocas sociais. O imaginário machista, então, segue alimentando-se de meninas que aprenderam a ser machistas e criam os seus filhos e filhas de acordo com tais ditames. “Isso é brinquedo, lugar, coisa, cor, trejeito, comportamento, pensamento, profissão de menina”; “homem não chora”; “Tem que agir como homem”; “agora que seu pai morreu, você é o homem da casa”. Trata-se de uma cultura sexista de negação do outro à condição de sujeito de suas condições, vontades e direitos.
São incontáveis as censuras e as violências aplicadas aos meninos e meninas. Ao ponto que desde cedo todos aprendem como devem se comportar, do que devem gostar e do que, ou de quem, devem se afastar, caso seja presenciado um comportamento diferente do normal.
A segregação, aliás, é prática que se aprende em casa e se reproduz na escola, um dos primeiros lugares de sociabilidade da criança. É na escola que, para além das primeiras letras e números, os pequenos e pequenas reproduzirão o imaginário machista, nem sempre reprimido/contextualizado por professores e professoras. Aliás, a depender de certos pais e mães, o docente que tentar dialogar sobre respeito à diversidade pode ser acusado pelos defensores da “escola sem partido” de praticar uma educação doutrinadora.
Assim, na escola, via de regra, as crianças têm os seus corpos e comportamentos vigiados e socialmente punidos por seus pares. Ainda mais quando não há identificação entre o gênero atribuído e o vivenciado/sentido.
A experiência escolar, nesse sentido, pode deixar muitas marcas. Dentre essas, as piadas. Atualmente classificadas na categoria de bullying ou ciberbullying, o elemento que deveria conter humor perde o sentido, ou deveria perder, quando constrange ou humilha as pessoas tidas ou identificadas como diferentes. Ainda mais quando se trata de condições de gênero e/ou afetividades. Nesse caso, a piada pode se tornar mortal, justamente por conter um suave veneno ingerido pela vítima por um tempo indeterminado; um maquiavelismo que se aproxima das tramas mais loucas e cruéis de Palhaço Príncipe do Crime, mais conhecido como Coringa.
Assim como na trama do fugitivo de Arkham, é possível enlouquecer até a pessoa mais sã, quando os meios, os fins e os princípios de uma causa como a transfobia emerge de um comportamento, do mesmo modo, insano. Afinal, não parece excêntrico forjar uma sociedade onde todos precisem ser exatamente iguais em gostos, comportamentos e identidades? O normal não existe, mas todos, em algum momento de nossas vidas, fomos obrigados a pensar o contrário. Fomos obrigados a naturalizar o diverso como louco, entrando numa espiral de perturbação semelhante ao “Alienista”, distopia machadiana de fins do século XIX. E depois de tanto sermos martelados no sentido de naturalizar preconceitos, suavizando suas práticas mediante uma máscara de brincadeira sem importância, acaba por se achar normal tal comportamento. Mas não é! As consequências das piadas que desumanizam as pessoas trans são múltiplas, mas, certamente, a pior delas é a que abre precedentes para violências físicas e psicológicas, que levam a homicídios e suicídios.
O Brasil, aliás, lidera o ranking mundial de assassinatos de transexuais, apesar da dificuldade de se contabilizar muitos desses crimes. Muito por conta do preconceito evidenciado nos boletins de ocorrência, e também pelo fato de que, por vezes, a face desses algozes é familiar. Incontáveis são os casos em que as agressões acontecem dentro de casa.
A transfobia não respeita fronteiras nem reconhece limites; o que a torna tão letal, observados os contexto abordados neste ensaio, que busca discutir o tema sem esgotá-lo, sem lugar de fala, por um lado, mas, por outro, admitindo que é preciso não se calar diante de tamanho acinte à dignidade das pessoas. O silêncio dos “bons” sempre incomodará mais do que os esbravejamentos dos “maus”.
A questão é que a linha que classifica esses supostos “bons” e “maus” é tão tênue, que, podemos ser traídos em nossas impressões e perspectivas. Recentemente pôde ser visto e ouvido em uma live de uma das cantoras mais populares da atualidade esse comportamento, que, ao naturalizar o preconceito e tornar a diversidade de gênero e de afetividade algo cômico, fez emergir novamente discussões sobre como determinadas piadas podem ser mortais. Interpelada de sua atitude, a cantora se desculpou. Mas será que o faria caso ninguém tivesse se pronunciado? Até que ponto a admissão de seu erro é autêntica?
Se a violência contra a mulher já é uma terrível chaga que este modelo de sociedade carrega (quero acreditar que com certo constrangimento), o cenário de vulnerabilidade das mulheres trans é ainda maior, sobretudo quando se vivencia o desmonte de políticas públicas voltadas para a garantia de direitos da população LGBTQI+ em âmbito nacional. Nesse contexto, seriam essas políticas afirmativas que poderiam garantir, por exemplo, o acesso e a permanência de mulheres trans e travestis no sistema educativo e também, a posteriori, no mercado formal de trabalho. Isso porque é sabido que ao assumir sua condição no ambiente familiar, é muito comum a expulsão de casa; o que acaba por arrastar essas pessoas para a marginalidade e a prostituição.
A ausência do Estado na proteção e na dignidade das pessoas; o machismo como legitimação de pretensas normalidades excludentes e perversas; e a violência física e simbólica externalizadas pela sociedade parecem ser três aspectos que contribuem para esse panorama em que a desumanização e a ausência de empatia só intensificam o cenário de transfobia.
Um ensaio com um tema assim, relevante, não fecha, não se conclui. Ele precisa, necessariamente, reverberar e indispensavelmente ser revisitado, reeditado. Por hora, peço ajuda a dois poetas, uma mais atual, outro atemporal, para me ditar trechos de suas composições e assim poder formar mais do que uma sentença, uma oração, uma prece, um voto para que nossas futuras gerações vivenciem em plenitude o que almejamos como um sonho, ainda que possível: “Quem dera, pudesse todo homem compreender [sem a necessidade de Superhomens, Batmans, Lex Lutors ou Coringas], oh mãe, quem dera…”, que as pessoas têm direito de serem “quem quiser; seja preta, indígena, trans, nordestina, Não se nasce feminina, torna-se mulher!”
*Mário Gouveia Júnior é professor acadêmico, mestre em Ciência da Informação. Escreve às sextas-feiras.
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