O tédio profundo como salvação da mente criativa

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 19.08.2020

No dizer do filósofo e crítico literário alemão Walter Benjamin, a modernidade nos legou uma nova barbárie, fruto de um processo que se estendeu pela afirmação de uma experiência inautêntica, como consequência do empobrecimento da experiência autêntica, que se daria pelo encontro, pelo viver em comunidade, pela força que se expressa no coletivo. Essa experiência inautêntica é resultado do isolamento que desvincula o sujeito de seu patrimônio cultural e o empobrece de forma tão violenta que não o afeta apenas de forma particular, mas que atinge toda a humanidade. Esse empobrecimento da experiência autêntica afetou drasticamente a linguagem, o que comprometeu absolutamente a narração. Para Benjamim, o modo de existência na modernidade afetou de tal forma a narração que, cada vez mais, a experiência de contar e de ouvir histórias foi se extinguindo, pois as pessoas já não têm as mesmas formas de convivências coletivas para narrar suas memórias e experenciar coletivamente suas vivências. (Francisco G. G. de Lima e Suzana M. da C. Magalhães. Modernidade e declínio da experiência em Walter Benjamin. Revista Acta Scientiarum. Human and Social Sciences. Maringá, v. 32, n. 2, p. 147-155, 2010).

A permanência de uma cultura da narração exige uma abertura acolhedora e receptiva da memória para que haja trocas de experiências através da narrativa oral, como forma de consolidação e perpetuação da própria memória. Sem memória, as narrativas que marcam as experiências fundamentais para consolidar as vivências como modo de existências humanas não sobrevivem. Para isso, é preciso que haja um processo de relaxamento, de pleno descanso espiritual, que só pode ser equiparado ao tédio profundo. Tentando dizer de outra forma, é preciso atingir um modo de atenção plena para ser receptivo o suficiente enquanto ouvinte dessas memórias, o que só é possível num estado de profundo tédio, o que se assemelha a um profundo distensionamento espiritual.

A sociedade em que vivemos, caracterizada pelo excesso de informações e atribuições que se transformam em multitarefas, gera um progressivo processo de fragmentação e esgotamento das pessoas. Esse amontoado de atribuições, que exige cotidianamente atenção plena e obriga ao exercício da permanente produção, representa muito mais um declínio do processo civilizatório da humanidade do que um ponto alto de desenvolvimento. Engana-se quem compreende que essa competência para o exercício da multitarefa indica muito mais uma evolução do ser humano, pois ao contrário, está muito mais para um retorno ao modo de vida selvagem.

O filósofo Byung-Chul Han afirma que a multitarefa é um modo recorrente muito próprio dos animais em estado selvagem, isso porque se trata de uma técnica imprescindível para garantir a própria sobrevivência no mundo da selva. Han argumenta essa afirmação dizendo que “um animal ocupado no exercício da mastigação de sua comida tem de ocupar-se ao mesmo tempo também com outras atividades. Deve cuidar para que, ao comer, ele próprio não acabe comido. Ao mesmo tempo tem de vigiar sua prole e manter o olho em seu(sua) parceiro(a). Na vida selvagem, o animal está obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades. Por isso, não é capaz de aprofundamento contemplativo – nem no comer nem no copular” (HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017, p.32).

Por isso, o estado de atenção plena, no contexto de multitarefa, exige que a pessoa esteja permanentemente deslocando o foco da atenção, pois precisa cuidar de uma só vez de várias atividades. Assim, o que ocorre de fato, é que a atenção apesar de ser plena é absolutamente pobre e superficial, pois não tem foco para poder tornar-se profunda e, desse modo, ser contemplativa. O excesso de tarefas, de informações e de metas que a sociedade de desempenho impõe ao indivíduo impossibilita esse necessário aprofundamento contemplativo, apenas possível a partir de uma atenção profunda, e isso faz com que a sociedade, paradoxalmente em relação ao desenvolvimento tecnológico, caminhe para um modelo civilizatório mais atrasado no que diz respeito à condição humana.

As mentes estão sempre ocupadas e inquietas, pois é necessário produzir mais e mais, por isso, são incapazes de exercer a criação do novo, na medida em que estão atreladas permanentemente ao que já está criado e estabelecido.

Han afirma que “o tédio profundo constitui o ponto alto do descanso espiritual” (2017). No entanto, o modo de vida atual não admite o tédio. Por isso, gera uma espécie de movimento inquieto que torna incapaz o alcance desse estado de contemplação plena, possibilitado pelo tédio profundo. As mentes estão sempre ocupadas e inquietas, pois é necessário produzir mais e mais, por isso, são incapazes de exercer a criação do novo, na medida em que estão atreladas permanentemente ao que já está criado e estabelecido. Desse modo, apenas estão repetindo o já existente e não se ocupam com exercício da criatividade, com a possibilidade de gerar o novo. O tédio profundo é o pássaro capaz de gerar esse novo e de abrir possibilidades de travessias que podem levar a saídas dessa encruzilhada remontada pela deletéria sociedade de desempenho, que esmaga e escraviza cada vez mais o ser humano em si mesmo. Como afirma Walter Benjamin, “o tédio é o pássaro onírico que choca os ovos da experiência”. Parece que a tarefa dessa modernidade é matar definitivamente esse pássaro.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

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