Educar os corações e as mentes

Por

Vera Lúcia Braga de Moura*

Em 20.08.2020

Quais os pensamentos e sentimentos que povoam as nossas mentes cotidianamente? Será se nós nos perguntamos sobre essas questões com o cuidado e a responsabilidade que elas merecem? Quando tocamos as outras pessoas com nossas palavras, emoções e ações, tocamos todo um entorno, podemos dizer que tocamos o mundo. Uma palavra mal dita não tem como ser desdita, mesmo com as costumeiras desculpas necessárias, pois muitos nem se debruçam sobre a ação humana para buscar corrigir os seus atos. Assim, a palavra impulsiva e violenta já afetou a outra pessoa, e seus reflexos podem atingir outras dimensões relacionais, ferindo as nossas humanidades.

Ao pensar em educar mentes e corações, os percebo como entes integrados, e não separados. Somos eixos integradores que se conectam permanentemente. Nós somos organismos vivos articulados que, às vezes, teimamos em nos ver fragmentados, bem como, muitas vezes, tendemos a olhar o mundo e as pessoas de forma separada e apartada de nós.  Somos seres muito complexos; o que sentimos, pensamos e como operacionalizamos essas ações incidem na forma como reagimos nas nossas relações com as outras pessoas, com a sociedade, com a vida, com as coisas e com o mundo. Somos seres relacionais. Não existimos fora das nossas relações. Estamos sempre nos relacionado com alguém, com alguma coisa ou consigo mesmo.

Os sentimentos àquela sensação que perdura por mais tempo em nós é a “paisagem do corpo”, segundo nos ensina o neurocientista português António Damásio ( 2012, p.18), em sua obra “O Erro de Descartes”.  Esses sentimentos, muitas vezes, nos trazem bem-estar, alegrias, felicidades, e em outras situações nos mostram inquietações, desconfortos e sofrimentos. As emoções são aquelas reações mais fugazes, mais momentâneas, mais afloradas, impulsivas, algumas vezes, que aparecem muito abruptamente em nosso corpo e em nosso sentir. Os sentimentos e as emoções interferem no nosso pensar e agir. Quando nos referimos a educar corações e mentes é no sentido de entendermos o que acontece com nosso corpo, com o nosso coração, com o nosso sentir, com a nossa mente. É conhecer e entender as reações que estão nos afetando de formas diversas ao longo dos nossos dias, das nossas experiências de vida, para aprendermos a lidar melhor com elas.

Assim, sentimentos e emoções têm uma função na razão humana, como afirma António Damásio. A forma como agimos e nos relacionamos com as outras pessoas e com a vida está intrinsecamente ligada aos nossos sentimentos e as nossas emoções. O corpo, a fala, refletem o nosso sentir. As nossas ações no mundo são uma representação daquilo que sentimos e pensamos. É prudente ressaltar que como seres relacionais o contexto socioeconômico e cultural sempre estará atrelado às nossas histórias de vida. Assim, a alteridade nos alerta para que não julguemos as pessoas, e, sim, busquemos compreender tais ações dos sujeitos sociais, pois uma atitude nossa pode incorrer em marcas indeléveis de violências imputadas em muitos. Existe o cuidado humano de nos questionarmos sobre qual trajetória de vida determinada pessoa transita? Quais os desafios, adversidades, abandonos, injustiças, abismos, violências que muitos seres humanos precisam enfrentar, diariamente, para garantir a sua (sobre) vivência? Não estou buscando relativizar os atos impensados ou equivocados, mas compreender o universo que a outra pessoa habita. Dotar a vida de humanidades. Entender que os sentimentos, emoções e pensamentos são dotados de sentidos, não são entes inanimados, aleatórios, soltos sem historicidades e sem compromissos éticos consigo mesmo e com os demais seres.

O que nos dizem os comportamentos de pessoas que veiculam nas suas práticas sociais estigmas, preconceitos, racismos, misoginias, machismos, discriminações, exclusões, bullyings, homofobias, formas de violências que habitam livremente em nossa sociedade? Essas atitudes refletidas por meio de sentimentos, emoções, pensamentos, do fazer humano precisam urgentemente passar por uma autoanálise e compreender que toda ação humana que fere, machuca, ofende, discrimina, exclui, desrespeita outro ser humano não deve ser levada adiante, e, sim, resignificadas e compreender as conexões que nos nutrem e nos tomam humanos.  Essas formas de agir que não reconhecem a singularidade e as características identitárias do sujeito destroem as nossas humanidades, geram violência, desequilíbrios, afastam-nos da nossa essência, nos descaracterizam, nos desumanizam, nos tornam inumanos, nas palavras do filósofo alemão Martin Heidegger.

Quando eu faço o convite para educar os nossos corações e as nossas mentes é, sobretudo, para buscarmos fazer o movimento empático de enxergar a outra pessoa no seu mundo, também, nas suas fragilidades, dificuldades e singularidades.

O neurocientista António Damásio (2012, p. 19) vai dizer que as “emoções e sentimentos são os sensores para o encontro, ou falta dele, entre a natureza e as circunstâncias”. Dessa forma, os sentimentos e as emoções são nossos guias para nos dirigirmos ao mundo, considerando seu contexto sociocultural. Assim, surge o questionamento: que incursão nós fazemos no mundo? Qual o nosso lugar na vida? Como nos posicionamos nas nossas relações com as outras pessoas? Quais os sentimentos que transmitimos quando nos relacionamos? Quais emoções permitimos que aflorem? Somos autocentrados? Conseguimos enxergar o outro ser humano em suas dimensões, identitárias, afetivas, culturais, sociais? Afinal, como seres humanos que sentimos e pensamos, temos responsabilidades nessa interação relacional. Escuto algumas pessoas narrarem que são muito “sinceras”, “verdadeiras”, “autênticas”, “ transparentes”, e amparadas por essas terminologias e crenças, se permitem ofender, excluir, negar, xingar, falar mal, agredir, violentar a outra pessoa. Quando eu faço o convite para educar os nossos corações e as nossas mentes é, sobretudo, para buscarmos fazer o movimento empático de enxergar a outra pessoa no seu mundo, também, nas suas fragilidades, dificuldades e singularidades. Existe vida para além de nós mesmos. Para além do certo ou errado. Para além de nossas formas de ser e estar no mundo. Indagamos, num movimento retórico, tal qual fez Hamlet (personagem de William Shakespeare na peça Hamlet) outrora: “Ser ou não ser, eis a questão”, provocando nossa consciência existencial diante do agir e do devir frente as adversidades da vida.

Ao pensar na nossa forma de agir em sociedade, nas nossas relações, nas conivências que deveriam ser baseadas na horizontalidade, na afetividade, no respeito e não nas hierarquias pautadas pelas relações de poder, me vem a memória a história das mentalidades. Reporto-me nesse momento à obra “Domínios da História” (2011), no artigo “História das Mentalidades e História Cultural”, do historiador brasileiro Ronaldo Vainfas, quando ele assinala ideias básicas para nós pensarmos as mentalidades utilizando os conceitos de Jacques Le Goff, historiador francês, quando busca explicar de certa forma a nossa maneira de condução das nossas mentalidades, tão supostamente inalterada, quase que congelada no tempo.

Le Goff vai dizer, como assinala Ronaldo Vainfas, que a primeira ideia conceitual sobre as mentalidades se refere ao “recorte social das mentalidades, que o autor diz ser abrangente a ponto de diluir as diferenças inerentes à estratificação social da sociedade[…]”. Assim, a mentalidade de um ser humano histórico, que tenha uma importância social, é vista com base no que ela tem em comum com as outras pessoas do seu tempo. Já as mentalidades das “pessoas comuns” escapam ao nível da história das mentalidades. Óbvio que as pessoas sem uma visibilidade social, a pessoa denominada “comum” tem, também, o seu sentir, pensar e agir, porém, não fica visível para a sociedade como o pensar, sentir e fazer do ser humano considerado com uma importância social diferenciada, devido à posição e funções socioculturais ocupadas.  Com isso, não estou negando a importância de todos os seres humanos para a História e para a vida em sociedade Contudo, na estratificação social é sabido que nem todos os seres humanos têm a sua história contada, respeitada, visibilizada e representada. São algumas das lacunas da História.

Outro aspecto no campo das mentalidades é o inconsciente coletivo. Diz, ainda, Le Goff, da necessidade de se fazer uma “arqueopsicologia” para tentar desvendar as nuances do inconsciente coletivo. A questão das mentalidades, do nosso pensar, das nossas ideias, crenças, dos conceitos, preconceitos, está no tempo de longa duração, aquela temporalidade que se estende, um tempo maior, de longo alcance, é um dos tempos refletidos pelo historiador francês Fernand Braudel. Um terceiro aspecto é que não podemos “desligar as mentalidades da estrutura de classes ao lado das estruturas comuns”, como assinala Le Goff (apud VAINFAS, 2011, p.128;129) e que a “mentalidade é aquilo que muda mais lentamente” na sociedade.

Nessa direção, vale a pena refletirmos sobre o nosso recrudescimento acerca de cristalizar pensamentos, ideias, conceitos, preconceitos, ao agirmos de forma engessada, não ampla, inflexíveis, a ponto de reproduzirmos décadas imemoráveis, equívocos, estigmas, discriminações, exclusões e causar danos irreversíveis que ferem o humano e que carecem de práticas educativas para ressignificar essas mentalidades e propormos um caminhar transformador, que enxergue o ser humano nas suas diferenças, singularidades e necessidades. Precisamos nos educar para aceitarmos e reconhecermos a diversidade como substância da condição humana. Ressalto que educar para a vida, para viver relações saudáveis e respeitosas, para a vida em sociedade não é só função da escola, embora esse seja o lócus mais apropriado para tal objetivo. Educar é uma prática social que ultrapassa os muros da escola. É uma função social de todos nós. É importante entender que a vida é um campo de múltiplas possibilidades, acreditar no potencial de transformação humana e que encontros, reelaborações, ressignificações, um outro caminhar sem visões deterministas e excludentes é possível. Que eduquemos nosso olhar, nossos corações e as nossas mentes para construções de outras mentalidades, nas quais as emoção, os sentimentos, pensamentos e ações nos possibilitem enxergar a comunidade humana como nossa efetiva morada.

*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/ Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco. Escreve às quintas-feiras.

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