O teto de milhares é o azul do céu

Por

Eugenio Jerônimo*

Em 29.08.2020

— Em que rua o senhor, mora?

O homem sorriu:

— Ah, moça!… Eu moro em muitas ruas.

— Como assim?

Esse é um fragmento de diálogo entre Francisco e uma atendente de banco. Ele está tentando um cadastro para receber a ajuda do governo aos miseráveis.

Francisco, na verdade, é Cisco. Francisco é um nome que guarda como documento só para mostrar a gente importante. Feito a moça do banco, por exemplo.

Cisco, como ele próprio diz em estilo trágico-poético, mora andando. É uma das 24 mil pessoas que vivem em situação de rua na cidade de São Paulo. Número que corresponde à população inteira de muitas cidades brasileiras e que até supera a de muitas outras.

A história de Cisco parece com a história de Vina, com a de Preta, com a de Nino. Todos se tornaram um tracinho no gráfico dos sem-teto que moram nos centros urbanos do Brasil.

Em dias recentes, uma socialite deu uma entrevista na qual acusa as pessoas que vivem em situação de rua de serem culpadas da própria miséria. Preguiçosos e viciados, na sua visão.

O que mais impressiona na opinião da rica senhora é o fato de ela ter explicações tão claras e simples para fenômenos tão opacos e complexos tais quais o comportamento humano, a organização social e estrutura econômica.

Tivesse mais poder que tem, recolheria todos compulsoriamente das ruas, numa espécie de carrocinha de humanos. Sem a nódoa dos mendigos, pensa, a cidade teria uma boa imagem para as fotos que os turistas levam.

Com o gesto simples de folhear para trás umas poucas páginas da história, a socialite veria esta realidade. Seu avô, um próspero barão do café. As roças cultivadas com o suor – frequentemente com sangue – de escravos. O bisavô de Cisco, um dos escravos.
Para não sujar as mãos na poeira da história, pode a madame acessar notícias contemporâneas e constatar a relação entre crise econômica e crescimento do percentual de moradores em situação de rua.

Hoje Cisco perambulou pelas ruas o dia inteiro catando latinhas, como faz cotidianamente. Alimentou-se do pão misericordioso distribuído por um grupo de jovens voluntários.

Agora, debaixo de uma marquise, monta sua cama, umas desgastadas folhas de papelão que pouco conseguirão disfarçar o piso duro. Mas esse se trata de um problema menor. A grande luta vai ser contra os termômetros, a céu aberto e dividindo fraternalmente o espaço, inclusive o lençol, com Paçoca, a cachorra que o acompanha. O frio da madrugada anterior levou Mocinha, também condômina das calçadas.

Cisco não é um virtuoso como a socialite nem tem o mérito de herdar todos os bens. A mansão do Morumbi. A casa de praia de Angra dos Reis. A fazenda do Vale do Paraíba. O apartamento de Nova Iorque.

*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria). Escreve aos sábados.

Foto destaque: observatorio3setor.org.br