Da utopia à distopia

Por

Carlos Luiz Gomes*

Em 29.08.2020

No final dos anos setenta e inicio dos anos oitenta, estudiosos e pensadores profetizavam que o Brasil era um país do futuro, cujo porvir seria criado pelos jovens da época. Ainda bastante jovem, eu tinha meus sonhos pessoais, e, também, sonhava em ver o país desenvolvido, com justiça social, liberdade, e governado por pessoas honestas, comprometidas com o crescimento econômico e a moralidade política. À época, tratava-se de uma utopia (uma sociedade imaginária futurística, perfeita, equilibrada e na qual as políticas se orientam totalmente pelo bem-estar da população). Passadas quatro décadas, realizei meus sonhos, mas, hoje, o Pais utópico corre o perigoso risco de ser um lugar distópico (uma sociedade imaginária onde tudo está organizado de uma forma opressiva, assustadora ou totalitária, contrariamente à utopia. A nação tinha potencialidades, se devidamente exploradas e administradas poderiam galgá-la à condição de sociedade utópica, tão sonhada e esperada por todos, consciente ou inconscientemente. Por que o Brasil era uma promessa de uma grande nação? Ele era dono de 12% das reservas de água doce superficial do mundo, constituído de um povo trabalhador e alegre, de um território imenso e turístico, de terras agricultáveis, tinha um parque industrial pronto para crescer, academias de excelentes qualidades, etc. O país conseguia ter uma população diversificada decorrente da mistura de negros, índios, portugueses e imigrantes de vários lugares, incrivelmente falando uma única língua, o português, sem guerras santas e/ou civis.

Na caminhada à utopia, o Brasil teve ditadura, redemocratização, um presidente sindicalista, dois impeachments de presidentes, a direita, a social democracia e a esquerda governando o País. Nesse período, o  lado podre do poder se revelou, onde valores morais e humanos estiveram longe ou ausentes no ato de governar a nação. O roteiro desse filme tinha tudo para ter um final infeliz: tortura, censura, corrupção, desmandos públicos, mensalão, petrolão, rachadinha, dinheiro na cueca, milhões em malas em um apartamento, entre outras mazelas morais.

Para não dizer que sou um protótipo do homem do subsolo de Dostoiévski[1] vi avanços no Brasil no que diz respeito à economia e às políticas públicas sociais. O país foi cobaia do socialismo e neoliberalismo. Ele galgou o pódio da oitava economia do mundo . E daí? (frase de escárnio que o atual presidente usou ao falar das mortes pela Covid-19). Que adianta pertencer ao ranking das dez maiores economias do mundo com índices sociais vergonhosos, principalmente em distribuição de renda, saúde, segurança e educação?

  • Segundo o PNUD[2] (programa das nações unidas para o desenvolvimento), o Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo, melhor apenas que os africanos.
  • O PISA[3] (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) de 2018 apontou que o Brasil tinha baixa proficiência em leitura, matemática e ciências, se comparado com outros 78 países que participaram da avaliação. Revelou que 68,1% dos estudantes brasileiros com 15 anos de idade, não possuíam nível básico de matemática, o mínimo para o exercício pleno da cidadania. Em ciências, o número chegava a 55% e, em leitura, 50%.
  • Entre 2011 a 2015, a violência no Brasil matou 278.839 pessoas. Número maior que as mortes da guerra da Síria[4].
  • O caos na saúde se revela todos os dias na mídia, com hospitais lotados sem leitos, pessoas morrendo sem assistência digna. O SUS sobrevive sem apoio necessário governamental para exercer o seu papel constitucional dignamente.

Em 2018, parte da população cansada de tanto sofrer, repleta de ódio e ressentimentos, sentindo-se órfã de um pai herói (podemos entender como complexo paterno), elege um novo presidente e projeta nele, como uma criança abandonada pelo pai biológico, a figura do salvador da pátria. Nesse processo de relação com esta figura de pai herói essa população passa a acreditar em tudo que ele fala, suas narrativas são verdades absolutas. Cabe aqui citar Dostoiévski (diário do subsolo, 2012,p.37): “O homem se apega tanto ao sistema e à conclusão abstrata que fica pronto a distorcer, de propósito, a verdade, fechando os olhos e tapando os ouvidos, só para justificar a sua lógica¨.

Para o novo governo e seus seguidores raivosos é chegada a hora de praticar justiça com vingança, Na plataforma de poder do novo salvador tem fé fundamentalista, xenofobia, racismo, liberação do uso de arma para população, homofobia, escárnio com a vida do próximo, ataque às instituições democráticas, negação à ciência, desrespeito à natureza e aos povos indígenas, eleger os comunistas como o maior perigo para o Brasil, neoliberalismo (minimização do estado na sociedade), volta da ditadura, produção de fake news, etc.

Será que estamos chegando num lugar onde a distopia existe, a imaginação virou realidade? (vide o filme Laranja Mecânica para entender uma distopia).  Parte da sociedade acha normal banalizar o ser humano com ódio e ressentimento, uso desenfreado de fake news para atacar opositores, racismo, separatismo, ataques físicos e verbais às instituições democráticas e às pessoas que divergem das ideias governistas, milícias e tráfico de drogas ditando regras em comunidades carentes. Segundo o  Atlas da Violência[5] 2018, a cada 100 pessoas assassinadas no país 72 eram negras. A pandemia já matou quase 120 mil pessoas e o líder da nação não apresenta um único gesto de condolência pela vítimas da Covid-19. Algumas de sua falas insensíveis no momento de dor: ¨E daí?¨; ¨O brasileiro pula em esgoto e não acontece nada”. Vida que segue, a economia vale mais que as 1000 pessoas que morrem por dia. Este cenário brasileiro nos remete ao ensaio Necropolítica[6] do filósofo Achille Mbembe, que fala das teorias de Necropolítica e Necropoder:

¨A expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Exercitar a soberania é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação de poder¨

 

[1] DOSTOIÉVSKI, Fiodór,Diário do subsolo, São Paulo,Martin Claret,2012

[2]https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2019/12/09/brasil-e-o-7-mais-desigual-do-mundo-melhor-apenas-do-que-africanos.htm

[3] http://portal.inep.gov.br/artigo/-/asset_publisher/B4AQV9zFY7Bv/content/pisa-2018-revela-baixo-desempenho-escolar-em-leitura-matematica-e-ciencias-no-brasil/21206

[4] https://exame.com/brasil/violencia-brasil-mata-mais-guerra-siria/

[5] https://observatorio3setor.org.br/noticias/racismo-mata-71-das-pessoas-assassinadas-no-brasil-sao-negras/

[6] https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993

*Carlos Luiz Gomes é psicólogo, engenheiro e membro da Academia Cabense de Letras.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.