SALA DE CINEMA – “Em Chamas” – A constante busca por respostas em um mundo misterioso

Por

Pedro H. Azevedo*

Em 30.08.2020

A vitória estrondosa de Parasita, de Bong Joon-ho, na última premiação do Oscar, no Festival de Cannes e nas bilheterias mundiais direcionou holofotes para o cinema sul coreano. O país, que desde o fim dos anos 90 investe massivamente — tanto o governo quanto empresas gigantes como Hyundai e Samsung — na sua indústria cinematográfica, já começou a aparecer no radar dos grandes festivais de cinema internacionais no início dos anos 2000. Foi com o segundo filme da trilogia da vingança de Park Chan-wook, Oldboy, ganhando no Festival de Cannes de 2004 o Grand Prix, segundo prêmio mais importante do festival, que a Coreia começou a chamar atenção do mundo cinéfilo, atingindo o ápice com Parasita.

Durante esse intervalo, de Oldboy a Parasita, além de Park Chan-wook e Bong Joon-ho, outros grandes diretores sul coreanos surgiram para o mundo com grandes filmes. Um deles é Lee Chang-dong. Antes de entrar no mundo do cinema, Lee já era um romancista premiado na Coreia do Sul, fato que vai explicar bastante a sua relação com a linguagem cinematográfica. Sua estreia como diretor foi em 1997 com Green Fish, filme de máfia com uma abordagem mais dramática e introspectiva do que os filmes desse gênero, características que vão reaparecer em todos os seus próximos filmes.

O diretor que fez apenas seis filmes até agora já é visto por muitos como um artista do nome maior. A reduzida quantidade de obras realizadas em mais de duas décadas de carreira se perde diante da qualidade que todos os seus trabalhos apresentam. Qualidade que culminou no seu último filme, Em Chamas. Lançado em 2018, o filme foi o de maior sucesso da carreira do diretor até agora e o último coreano a fazer barulho antes de Parasita.

Em Chamas mostra os desdobramentos na vida de Jong-su (Yoo Ah-in), um jovem e confuso escritor que ainda não publicou nada e que trabalha como entregador, após reencontrar Hae-mi (Jeon Jong-seo), garota com uma personalidade extrovertida e ingênua que era sua vizinha na infância, e começar a cuidar do gato da colega de infância enquanto esta faz uma viagem para a África. Ao retornar, Hae-mi está acompanhada de Ben (Steven Yeun), um jovem rico e elegante, que possui um comportamento misterioso e enigmático que vai intrigar Jong-su.

O filme é baseado no conto Queimar celeiros de Haruki Murakami, aclamado escritor japonês, que, por sua vez, se inspirou no romance O Grande Gatsby, do norte-americano F. Scott Fitzgerald, e em um conto de William Faulkner chamado Barn Burning (mesmo nome do conto de Murakami em inglês). Todas essas obras literárias se misturam aqui, tendo como ingrediente principal a de Murakami. Mais do que simplesmente utilizar o trabalho do japonês como base para o roteiro do seu filme, Lee apropria-se do estilo narrativo e dos elementos presentes nos textos de Murakami, indo além do conto adaptado.

Haruki Murakami, escritor de sucessos como Norwegian Wood, Crônica do Pássaro de Corda e Kafka à beira-mar explodiu no Japão na segunda metade dos anos 80 entre os jovens adultos do país com romances, ensaios e contos que dialogam com a vida globalizada na sociedade ultra capitalista japonesa. Nas histórias de Murakami as agitadas ruas das grandes cidades japonesas são retratadas de maneira melancólica, os seus personagens vivem à procura de um sentido maior dentro de uma realidade formada por fragmentos de consciências isoladas. Nessa realidade, relações plenas inexistem e amor nenhum consegue perdurar devido a uma impossibilidade em acessar o mundo do outro, tudo é um mistério. Olhando através de olhos ordinários, Murakami estabelece a solidão do indivíduo contemporâneo dentro de um mundo cosmopolita que flui misteriosamente sem um motivo claro, a realidade e a sociedade não entregam nenhuma justificativa para o ser humano. Resta aos seus personagens uma busca interna através de mundos próprios, de universos do subconsciente/inconsciente ou de uma realidade paralela. Essa pluralidade do real serve como uma representação das múltiplas realidades causadas pela pós-modernidade, onde não é possível encontrar um norte comum para a vida devido às diferentes fabricações sociais, culturais e espaço-temporais que coexistem em um mundo globalizado. Seus romances e contos possuem uma aura constante de mistério e inquietação, mesmo quando não há um claro direcionamento para o surreal a permanência de um “oculto” e a consequente iminência de uma revelação maior a respeito da realidade ainda é insinuada, escancarando uma falta de sentido geral no mundo. E é tudo isso que Lee Chang-dong vai concretizar em seu filme.

Muito mais do que utilizar o estilo como simples matéria-prima para seu filme, Lee vai capturar essa realidade fragmentada murakamiana para criar uma estranheza que sugere um grande mistério a respeito da realidade existente. Lee utiliza-se de misteriosas ligações, um poço e até um gato como elementos que revelam a natureza frágil de uma realidade dividida por diferentes visões. Esses mesmissimos elementos (as ligações, o poço e o gato) são utilizados por Murakami em Crônica do Pássaro de Corda, um dos seus principais romances.

Por ser um escritor antes mesmo de começar a dirigir, talvez Lee Chang-dong possua uma maior facilidade de evidenciar o texto na encenação dos seus filmes. Através de uma mise en scène extremamente consciente do que quer passar em tela, Lee escolhe filmar tudo por meio de um formalismo rígido que se preocupa em trazer à tona os elementos do texto original, uma narrativa de fato. Não temos nenhuma tentativa de narrativa mais experimental ou incomum, a montagem também não se preocupa em criar nenhum truque maior, nem a câmera se perde em movimentos e ângulos anormais. Uma escolha estilística que procurasse deslocalizar ou confundir o espectador para criar uma aura enigmática, através de uma narrativa mais onírica e diluída, muito mais do que reforçar os mistérios do filme acabaria enfraquecendo-o. Assim como o diretor norte-americano David Fincher vem fazendo nos seus últimos filmes, Lee não tenta criar mistério através de um estilo que deslocaliza, mas utilizando a omissão, o “contar sem contar” e a limitação do ponto de vista para estabelecer uma ambiguidade no que vemos. O mistério vem do que deixamos de saber e de uma atmosfera criada através de uma fria e melancólica fotografia e de um isolamento bem palpável que cresce nos longos planos de Jong-su observando o mundo, tentando decifrar a sua realidade. A câmera segue a todo momento o protagonista, o filme consegue aplicar no espectador a solidão, os desejos e as neuroses de Jong-su, nos isolamos do mundo junto com ele e passamos a viver na sua realidade individual, somente uma das várias existentes.

A multiplicidade do real fica bastante evidente na relação de Ben com Jing-su. O primeiro vive em Gangnam-gu, bairro mais rico da capital Seul, dirige um Porsche e está rodeado de boas companhias. Já Jing-su mora na zona rural do país, próximo da fronteira da Coreia do Norte, e dirige uma caminhonete velha. O desconforto e o sentimento de inadequação de Jing-su ao conviver nos ambientes luxuosos de Ben é palpável. Inclusive, a escolha de Steven Yeun (ator coreano naturalizado norte-americano mundialmente famoso pelo seu papel na série The Walking Dead) para representar Ben não é por acaso, assim como o fato de Jing-su morar tão próximo da Coreia do Norte, a ponto de ser possível escutar as transmissões do país vizinho também não é aleatório. As diferenças de realidade se repetem nos mais variados aspectos e conforme esses diferentes mundos se chocam na figura de Hae-mi, as coisas vão ficando cada vez mais abertas e ruidosas, um jogo simbólico é estabelecido e uma busca por respostas se torna mais direta (evito falar mais claramente para não dar spoiler).

A busca por sentido de Jong-su não é a única no filme, os outros dois personagens, cada um à sua maneira, também tentam encontrá-la. Hae-mi vai à África para conhecer a “Grande Fome”, a fome que vai além da física e é sentida na alma. Ben está a todo momento com uma expressão blasé e bocejando, como se nada fosse muito interessante. Já Jong-su quando perguntado sobre o que quer escrever não sabe, apenas diz que “o mundo é muito misterioso”. Cada um passa a procurar respostas de um modo nesse mundo misterioso, onde a única certeza é a que todos estão perdidos.

Em Chamas está disponível no serviço de streaming Belas Artes à la Carte, para conferir clique aqui.

*Pedro H. Azevedo é concluinte de Engenharia Mecânica. Escreve e administra a página Um Toque do Cinema no Instagram. Escreve aos domingos