Os grandes dias dos privilegiados
Eugenio Jerônimo*
Em 05.09.2020
Uma sutil e perigosa isca do Neoliberalismo é dizer que o dia de todo mundo tem vinte e quatro horas. Parece uma verdade natural. Natural e indiscutível como o ciclo das árvores ou a lei da gravidade, mas não é.
Assim, sob a ótica neoliberal, o que as pessoas fazem dentro do limite fatal das duas dúzias de horas de um dia vai definir seu sucesso ou seu fracasso. Dormir mais ou dormir menos, fazer atividade física ou cultuar o sedentarismo, empenhar-se em busca de objetivos ou conformar-se com o destino, seriam escolhas individuais.
Isa mora no Morro do Vai-não-Torna. Todo dia acorda às quatro da manhã. Pega um trem e um ônibus para chegar às sete e meia no trabalho. Quem cuida de seus filhos durante o dia é uma creche pública. E olhe que é afortunada. Muitas mães deixam seus filhos pequenos sob a tutela dos menos pequenos. Quando Isa está de volta à casa já é noite. Prepara a janta da família. Realiza algumas tarefas domésticas improrrogáveis. Segue para a faculdade. Enxerga no diploma de um curso superior a oportunidade de ascender do cargo de promotora de vendas de um fabricante de cosmético. No retorno da faculdade, lava roupa e não consegue deitar-se antes da meia-noite.
Bia mora no Leblon. Acorda às oito da manhã, mas, se a temperatura sugerir, pode ficar na cama por mais umas reparadoras horas de sono. A babá cuida das filhas, e o motorista as leva e as apanha no colégio. Bia alterna a primeira atividade diária. Um dia vai ao clube de tênis; no seguinte, à academia. Após os exercícios físicos, dirige-se à empresa. Assina documentos importantes e toma decisões de alta responsabilidade, capazes de impactar a vida de muita gente. No começo da noite volta para casa e costuma sair com o marido para jantar, em companhia de amigos, nos restaurantes caros. Ir a teatros também é um programa habitual.
Fica muito claro que Isa precisa esticar as vinte e quatro horas de seu dia para conseguir fazer todas as coisas que tem de fazer. Também fica claro que as vinte e quatro horas de Bia são vividas noutro ritmo e em outras circunstâncias.
Aliás, o dia de Isa só tem vinte e quatro horas, mas o de Bia soma muito mais que isso. Acresça-se ao seu capital de tempo o período de trabalho do motorista, das duas babás, do motorista, das duas empregadas domésticas, da governanta, do jardineiro. Só para contar os empregados da casa.
Convencer as pessoas de que o uso racional de seu tempo vai determinar seu fiasco ou sucesso é uma estratégia perversa do Neoliberalismo para ocultar as causas das desigualdades sociais. Submetidos a tal número de atividades que não cabe nas vinte e quatro horas de um dia, os indivíduos das classes sem privilégio ainda carregam o peso de não prosperarem socialmente porque não sabem administrar o tempo de modo eficiente.
*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria). Escreve aos sábados.
Perfeito poeta. Conseguiu traduzir nessa crônica a realidade da população. Parece que pra conseguir dar conta das atividades o dia precisava ter mais de 24h.