“Todos os sobreviventes se recordam da grande onda que os jogou na água”

Por

José Ambrósio dos Santos

Em 12.11.2020

Entre a certeza da morte em prisões na Líbia (Norte da África) e o alto risco de tentar atravessar o Mar Mediterrâneo em busca da ‘liberdade’, centenas de africanos frequentemente buscam a segunda opção, mesmo sabendo dos constantes e trágicos naufrágios. Tanto é assim que uma equipe da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF) prestou primeiros socorros psicológicos a 104 sobreviventes de naufrágios desde o início de setembro. O incidente mais recente ocorreu há poucos dias, quando um pequeno barco de bandeira libanesa virou ao largo da costa de Lampedusa, na Itália, por causa do mau tempo, por volta da uma da manhã. Quinze pessoas foram resgatadas por um barco de pesca, mas cinco seguem desaparecidas, incluindo uma menina de 2 anos de idade. Ester Russo, psicóloga de MSF, deu suporte aos sobreviventes. Confira seu relato completo:

“Fátima não consegue encontrar paz. O tempo parou para ela a partir do momento em que não podia mais ver sua filha de 2 anos de idade, segundos depois que uma grande onda virou o barco. Sua filha e outras quatro pessoas ainda estão desaparecidas. Dias após o trágico acontecimento, ela continua vendo em sua mente a imagem de sua filha em seus braços.

Na mesma viagem, Ibrahim, de 9 anos, perdeu a mãe e agora está sozinho na Itália. O pai dele ficou na Líbia. Antes de nossa chegada, Ibrahim fez um desenho mostrando os trágicos acontecimentos daquela noite.

Outro jovem, que perdeu seu primo na viagem, nos contou que a mãe de Ibrahim tinha ferimentos de guerra – uma bala na perna e outro na coluna.

Quando o grupo deixou Zawiya, na costa da Líbia, eles sabiam que a travessia do Mediterrâneo poderia ser uma jornada mortal, mas ficar preso na Líbia significava morte certa. Todos os sobreviventes desse trágico evento se recordam da grande onda que os jogou na água.

Antes disso, eles navegaram por 48 horas no Mediterrâneo central sem ter nada para comer ou beber. Eles ficaram sem combustível quando estavam a apenas 60 km da ilha de Lampedusa, exatamente quando o tempo estava piorando.

O barco virou por volta da uma da manhã. Felizmente, um barco de pesca estava por perto. A tripulação não perdeu tempo no resgate e deu roupas secas aos sobreviventes. Os sobreviventes imediatamente contaram para verificar se todos haviam sido resgatados, mas cinco pessoas estavam desaparecidas.

Essa foi a quinta vez desde o início de setembro que equipes de MSF forneceram primeiros socorros psicológicos para sobreviventes de naufrágios no Mediterrâneo – quatro vezes na Sicília e uma na região da Calábria. É prova de que os barcos continuam partindo da Líbia, apesar da ausência total de navios de busca e resgate, que estão impedidos de ir para o mar por bloqueios administrativos e por políticas desumanas que deixam pessoas abandonadas e sem chance de resgate.

Nossas equipes encontraram sobreviventes que ficaram à deriva no meio do Mar Mediterrâneo por 10 dias sem serem resgatados – homens, mulheres e crianças tentando chegar a um lugar seguro para escapar da morte e das horríveis torturas perpetradas na Líbia.

Até agora em 2020, pelo menos 500 pessoas perderam suas vidas no Mediterrâneo central e quase 9 mil pessoas foram devolvidas à força à Líbia.

Para pessoas como Ibrahim e Fátima, sua jornada ainda não terminou. Como todos os outros sobreviventes, eles deveriam ter a chance de começar uma nova vida.

Antes de partir, oramos com eles, máscaras banhadas em lágrimas”.

Os nomes foram alterados para manter o anonimato dos sobreviventes. (Com informações de MSF).

Foto: Hannah Wallace Bowman/MSF