Viver no semiárido é aprender a conviver
Mirtes Cordeiro*
Em 30.11.2020
O Instituto Regional da Pequena Agricultura Apropriada (IRPAA) inscreveu o seu nome definitivamente no semiárido brasileiro a partir de sua fundação, em 1990, com sua sede localizada em Juazeiro, na Bahia.
O semiárido brasileiro representa 11,39% do território nacional e abriga 29% da população do País. Possui uma extensão de 969.589,4 km², representando cerca de 62% do território nordestino, incluindo a parte semiárida de Minas Gerais.
Nesta região vivem 20.858.264 milhões de pessoas, com destaque para o fato de que 9,08 milhões (44%) pertencem à zona rural, caracterizada por alta vulnerabilidade, já que estão entre os mais pobres da região, com índices de qualidade de vida muito abaixo da média nacional.
A situação de pobreza da maioria da população que habita essa região já foi relatada por grandes escritores como Raquel de Queirós e Graciliano Ramos; poetas como Patativa do Assaré e cantadores de viola e repentistas como Ivanildo Vila Nova e Mocinha de Passira.
Euclides da Cunha, quando por aqui passou ao final do século XlX, escreveu os Sertões, livro que em linguagem científica retrata a guerra de Canudos, uma luta de Antônio Conselheiro e seu povo, todos pobres, contra os poderosos da época, representados pelo Exército brasileiro, numa peleja contra a fome, a miséria e o pagamento de impostos exigidos pelos latifundiários e o governo republicano.
O Açude do Cedro, localizado a 06 Km da cidade de Quixadá, no Ceará, foi a primeira grande construção envolvendo rede de canais de irrigação, feita após a seca ocorrida entre os anos de 1877 e 1879. A ordem para construção foi dada ainda por D. Pedro II, mas a construção só aconteceu com o advento da República (1889).
As obras planejadas à época estavam baseadas em “estudos de meios para o combate aos efeitos das secas”. Ficou então decidida a construção de barragens nos leitos dos rios para barrar as águas pluviais. O período entre o primeiro projeto e a inauguração foi de 25 anos e suas obras contaram, em grande parte, com o emprego de mão de obra dos flagelados da seca. Devido à sua importância histórica e sua beleza natural foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 1977.
Com a grande estiagem que ocorreu de 1877 a 1879, chamando a atenção das autoridades porque matou muita gente, a população do semiárido era caracterizada como os retirantes ou flagelados que se deslocavam em busca de sobrevivência. Até hoje a literatura registra histórias dos campos de concentração destinados à população faminta, para que não invadissem e saqueassem as cidades.
Lembro-me da minha mãe contando a história de sua família durante a seca de 15, quando meus avós abandonaram sua pequena propriedade, no sertão dos Inhamuns e caminhando, com quatro filhos pequenos e um pequeno rebanho de cabras e bodes, saíram em busca de um lugar ao sopé da chapada da Ibiapaba, limite do Ceará com o Piauí. Chegaram ao Município do Ipu já combalidos pela malária e os animais serviram de alimento por onde passaram.
Na verdade, hoje se tem a compreensão que no nordeste brasileiro não há seca. Vivemos numa região com características específicas com relação ao clima, com a existência de dois biomas, a caatinga e o cerrado.
Segundo alguns estudiosos, podemos atribuir a questão relacionada ao “fenômeno da seca” do Nordeste a três principais fatores: naturais (de ordem física e climática), históricos (heranças da colonização) e políticos (relacionados à indústria da seca).
O IRPAA, sem dúvida dedicou seus 30 anos de existência ao trabalho educacional com as famílias de pequenos agricultores que produzem alimentos para sua sobrevivência e para reprodução de suas famílias.
O foco do seu trabalho é a educação. Através do processo educacional busca aprofundar os conhecimentos sobre a realidade climática, as riquezas naturais existentes, a riqueza cultural e os saberes acumulados pelos povos que habitam, em busca de “soluções eficazes, que respeitam as características do povo e das terras desta região, alternativas que o instituto oferece através de seus diversos projetos.
Para o IRPAA, há quase 30 anos, viver no semiárido é saber reconhecer o seu valor. É preciso descobrir que o semiárido brasileiro tem muitos recursos e possibilidades e que é uma região diferente das outras do Brasil onde, para viver bem, é preciso aprender, primeiramente, a conviver com sua diversidade climática: as chuvas irregulares, os períodos longos de estiagens; as condições do solo, entre outros fatores. Essa convivência se dá principalmente a partir do conhecimento e do domínio das técnicas de produção apropriadas para este clima, buscando uma distribuição justa das terras, das águas e políticas públicas que atendam as demandas da região e garantam a permanência do povo na terra prometida.
Segundo Harald Schistek, presidente do IRPAA, “a concentração de terras e de água tem sido um dos principais limitadores do desenvolvimento da agricultura familiar no Semiárido. Além de faltar uma política de crédito e acompanhamento técnico continuado voltados para atender às reais necessidades da população rural, desde aquela que vive e desenvolve sistemas de produção agrícola ou animal em áreas de sequeiro, àquela que desenvolve cultivos de subsistência em pequenas áreas irrigadas.”
No Centro de Formação D. José Rodrigues, situado na localidade de Tourão, a 12 KM de Juazeiro, no Vale da Cruz, são realizados cursos, treinamentos e seminários com abrangência para todos os estados que compõem o semiárido. Sua área total de 30 hectares abriga espaços de demonstração de técnicas agrícolas, de manejo do solo e criação de animais utilizados pelos professores e monitores de conhecimentos – homens, mulheres, jovens, professores e outros atores capazes de ampliar o conhecimento para melhorar a qualidade de vida da população. Moram ainda nesse Centro estudantes de agrotécnica e agronomia. São moças e rapazes bolsistas, filhos e filhas de agricultores do semiárido ligados a entidades parceiras do trabalho. Eles complementam seus estudos através de atividades práticas oferecidas pelo Centro de Treinamento e participação em atividades da equipe técnica do Irpaa”.
Os cursos, distribuídos por eixo de trabalho, abrangem a diversidade da população considerando a ocupação das pessoas na família, na comunidade, na sociedade como um todo. Assim, a formação é dirigida
Não podemos esquecer que o modo de vida no semiárido tem reflexão no Nordeste e no país como um todo. De várias formas.
O trabalho do IRPAA tem articulação com muitas ONGs e organismos governamentais como a EMBRAPA e Extensão Rural, que se preocupam em desenvolver políticas públicas para a região. Exemplo do trabalho conjunto é a existência da Associação do Semiárido (ASA), que vem lutando pela garantia e melhoria da água com qualidade para o consumo e da Rede de Educação do Semiárido (RESAB), que avança nas discussões sobre a necessidade de uma educação pública que incorpore os conhecimentos sobre a convivência com a região, congregando educadores, educadores, instituições governamentais e não governamentaisque atuam na área de Educação no Semiárido Brasileiro.
“A política de desenvolvimento deve ser centrada no ser humano, com suas possibilidades e limitações, onde cada um possa dar sua contribuição ao coletivo. Derrotar crenças, dogmas e mitos sobre o semiárido implicam em ações e parece que se tem privilegiado a importação de modelos externos, quando deveriam ser procuradas aqui mesmo as alternativas. Cabe à Universidade o papel de difusora do conhecimento, seja na formação de professores e na extensão, promovendo programas de educação ambiental, nos diversos níveis de ensino, procurando servir à comunidade, não de longe mais bem de perto, e atuar de forma mais intensa, também na formação de pesquisadores”. (Sergio Murilo, professor UFCG).
A partir do dia 25 de novembro o IRPAA iniciou as comemorações dos seus 30 anos através de plataforma virtual, e para isso tem realizado seminários com a participação de colaboradores e representantes da sociedade civil e do poder público.
De modo que, durante os últimos 30 anos, a história do semiárido tem se construído com a história do IRPPA, num processo de intensa convivência, porque ‘viver no Semiárido é aprender a conviver‘.
*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.