Feminismos ou barbárie

Por

Bruna Müller Stravinski, Lays Cristina De Cunto Patrícia Maeda

Em 20.03.2021

Antes de iniciarmos nosso diálogo, talvez seja interessante pontuar que vivenciamos o lugar social de juízas do trabalho cis-heterosexuais não negras. Assim, não pretendemos falar em nome de todas as juízas e, muito menos, de todas as mulheres. Nas reclamações trabalhistas e nas audiências, ficam claras para nós as desigualdades de classe, gênero e raça. Cientes de nosso privilégio social, estamos em constante processo de desconstrução e constituição e gostaríamos de debater sobre a importância dos feminismos em nossas vidas.

No dia 8 de março, comemora-se o dia da mulher, oportunidade em que as homenagens à mulher “ideal” (bela, recatada, do lar, branca, instruída etc.) camuflam o sentido inicial de tal data: enaltecer a mulher trabalhadora.

Ainda que estejamos em 2021, mais de 100 anos após as movimentações sociais que marcaram a luta das mulheres trabalhadoras e mais de 40 anos depois da oficialização da data simbólica que as relembra, falar do dia 8 de março não é tarefa fácil.

A despeito da apropriação indevida feita pelo mercado, o 8 de março não trata de flores, perfumes ou bombons. O 8 de março está aí a nos dizer: a data nasceu da barbárie e é preciso estar atenta e forte para que não retornemos a ela.

Foram as péssimas condições de trabalho ­– ainda piores do que aquelas vivenciadas pelos trabalhadores homens – que uniram as mulheres nos movimentos sociais que buscavam o tratamento digno à vida e à saúde das trabalhadoras e trabalhadores.

A luta por igualdade sempre esteve colocada no seio de nossa sociedade, marcada pela forte hierarquização decorrente da colonização, em que corpos masculinos brancos se situam no ápice, seguidos pelos “outros” corpos: femininos, não cisnormativos, não heteronormativos, não brancos. Nesta dialética de dominação/subordinação, o direito tem papel fundamental, legitimando e, ao mesmo tempo, dissimulando desigualdades a partir da forma jurídica.

O Código Civil de 1916, por exemplo, subordinava juridicamente a mulher casada, a fim de assegurar a supremacia do homem na direção da família, consubstanciado no famigerado pátrio poder. Esta amarra jurídica, no entanto, não atingia a maior parte das mulheres, pois o casamento era uma formalidade cara demais para a classe trabalhadora. Se, por um lado, as mulheres trabalhadoras remuneradas eram mais livres, por outro, viviam em condições precárias e de vulnerabilidade.

A despeito do relevo social e jurídico dado à sujeição das mulheres a outrem – seja pai, irmão, marido ou patrão – as lutas encampadas por elas, movidas não apenas por interesses próprios, foram responsáveis pela transformação de alguns aspectos da sociedade brasileira.

Rememorar embates e conquistas das mulheres ao longo do século XX ajuda a compreender a importância de direitos fundamentais – não concedidos, mas alcançados como fruto de muitas lutas! – e que viriam, anos depois, a receber a proteção da Constituição Federal de 1988. Dentre elas, citamos:

– a luta de Laudelina de Campos Melo, em 1936, pela proteção legal e igualitária da categoria das trabalhadoras domésticas – o que demorou quase 80 anos para timidamente acontecer;

– Bertha Lutz, famosa pela luta pelo voto feminino, reivindicou também igualdade salarial entre homens e mulheres e melhores condições para gestantes e lactantes;

– a luta da advogada Romy Medeiros, por mais de 10 anos, pela aprovação do Estatuto da Mulher Casada, que, em 1962, reduziu a desigualdade jurídica entre cônjuges, sem extirpá-la, todavia;

– as mais de 1,2 milhões de assinaturas colhidas por mulheres da zona sul de São Paulo, organizadas nos clubes das mães e protagonistas do Movimento Custo de Vida, para exigir providências do governo militar quanto à carestia, reunindo mais de 20 mil pessoas na Praça da Sé, em 1978;

– o Comitê Brasileiro pela Anistia em 1978, que surgiu do Movimento Feminino pela Anistia, liderado pela advogada Therezinha Zerbini;

– a luta de mulheres campesinas pelo reconhecimento de sua condição de trabalhadoras rurais, pela filiação nos sindicatos e pelo título da terra, direitos reservados apenas aos homens;

– a luta de Margarida Maria Alves, Presidenta do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Alagoa Grande/PA, contra o latifúndio e a ausência de direitos trabalhistas, assassinada na porta de sua casa em 1983;

– o combate à violência contra a mulher, em especial com o movimento “Quem ama não mata”, desafiando a teoria (anti)jurídica da “legítima defesa da honra” por ocasião do julgamento de Doca Street no caso Ângela Diniz, que hoje seria tipificado como feminicídio;

– a atuação ampla e coordenada de Lélia Gonzalez na academia, na política e na militância. Fundadora de diversos institutos e coletivos, além do Movimento Negro Unificado (MNU), correlacionou, como ninguém, os temas racismo, sexismo e classismo na interpretação da sociedade brasileira;

– a criação, em 1985, do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (CNDM), órgão federal com a finalidade de promover políticas públicas para eliminar a discriminação da mulher, que lançou a campanha Mulher e Constituinte. De sua articulação, extraiu-se a Carta da Mulher Brasileira aos Constituintes, um marco histórico da participação política das mulheres, com propostas gerais nacionais e internacionais e quanto aos temas: família, trabalho, saúde, educação e cultura, violência;

– o chamado Lobby do Batom, grupo que reuniu 26 constituintes mulheres em 1986, cujo nome surgiu de forma depreciativa para se referir às parlamentares, que atuavam em conjunto e articuladas com vários movimentos sociais (advocacy). O grupo bastante heterogêneo conseguiu a aprovação de 80% sobre as propostas consensuais encaminhadas no texto final da CF/88, dentre as quais, podemos ressaltar: as licenças maternidade e paternidade, a garantia de emprego para a gestante, a expressa igualdade jurídica entre homens e mulheres (inclusive na sociedade conjugal), a igualdade de direitos entre trabalhadores urbanos e rurais, a constitucionalização de direitos para trabalhadoras domésticas, a titulação da propriedade conferida ao homem ou à mulher ou a ambos, independentemente do estado civil, e a instituição do Sistema Único de Saúde. 

A Constituição Federal de 1988 não abarcou todas as demandas dos movimentos de mulheres, mas inaugurou um novo patamar mínimo civilizatório, uma nova linguagem jurídica. E nisso não só a participação do Lobby do Batom foi fundamental, mas a atuação de todas as mulheres que ousaram questionar o status quo.

Assim, é de luta por melhores condições de vida e de trabalho para todos; é de feminismos, em franca oposição à barbárie, que o 8 de março fala.

Ocorre que, muito embora a Constituição Cidadã tenha garantido o avanço social para a sociedade brasileira em geral e igualmente para as mulheres, o neoliberalismo, iniciado na década de 1990, encarregou-se de impor retrocessos a partir da retirada de direitos e do desmonte das instituições relevantes que asseguram a materialização destes, razão pela qual a mera e abstrata positivação de normas jurídicas revela-se insuficiente para a superação do modelo patriarcal.

Há a necessidade de criar estratégias, nas esferas macro e micropolíticas, que possibilitem a mudança concreta e efetiva no destino de todas as mulheres e, por consequência, de toda a sociedade.

Para tanto, é indispensável que façamos uma análise crítica da realidade que nos circunda, sem as distorções ocasionadas pelas lentes da miopia social, a fim de que, conscientes das mazelas e iniquidades produzidas pela sociedade patriarcal, construamos coletivamente um futuro diverso do formato excludente que vivenciamos.

Mas não só!

A reflexão demanda, também, a reformulação de conceitos embasados na lógica da hierarquia classista sexista racializante que outrora foram introjetados em nossas subjetividades e no inconsciente coletivo.

O rompimento dos grilhões infligidos pelo patriarcado, no entanto, é doloroso, pois exige que despertemos do processo de anestesia a que fomos submergidos ao normalizarmos comportamentos incompatíveis com um mundo entre iguais que se respeitam mutuamente.

Porém, a troca do modelo patriarcal por outro mais inclusivo se apresenta como um percurso necessário para que nos distanciemos, definitivamente, deste cenário de violência arraigado no seio de nossa sociedade.

Ora, se, hoje, nós mulheres estudamos, trabalhamos, escolhemos com quem e como nos relacionamos, exercermos o direito ao voto, participamos da vida associativa e política, somos sujeitos de direitos, foi porque outras mulheres que nos antecederam conquistaram e abriram caminhos, antes inacessíveis, para possibilitar que nos tornássemos protagonistas de nossas próprias existências…

Olhar para a história da construção dos direitos nos permite entender o quanto eles são frutos de lutas e lutos de gerações de mulheres.

Nos últimos anos, assistimos ao desmonte daquilo que nos parecia líquido e certo: princípios protetivos, garantias de emprego, garantias de remuneração mínima, garantias de pausas e descansos remunerados, garantias de condições saudáveis de vida e trabalho para mulheres e homens, garantias de interrupção segura da gravidez em casos juridicamente autorizados, entre outros.

A conjuntura atual vem, uma vez mais, nos lembrar que direitos conquistados podem ser colocados em xeque e retirados a qualquer tempo, como já alertava Simone de Beauvoir: “Nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. Esses direitos não são permanentes. Você terá que manter-se vigilante durante toda a sua vida”.

A luta feminista, portanto, segue viva e imprescindível, tanto para zelar pelo não perecimento dos direitos já alcançados, como para pavimentar novos horizontes em prol das gerações vindouras, sem perder de vista a transformação da própria sociedade.

É de resistência e avanço, enfim, que o 8 de março fala.

Bruna Müller Stravinski é Juíza do Trabalho Substituta no TRT da 15ª Região (Campinas/SP). Integrante da Associação Juízes para a Democracia – AJD.

Lays Cristina De Cunto é Juíza do Trabalho Substituta no TRT da 15ª Região (Campinas/SP). Integrante da Associação Juízes para a Democracia – AJD.

Patrícia Maeda é Juíza do Trabalho Substituta no TRT da 15ª Região (Campinas/SP). Integrante da Associação Juízes para a Democracia – AJD.

Artigo publicado originalmente no portal Justificando.

Foto destaque: Mohamed Hassan / Pixabay