A desconstitucionalização dos direitos humanos no Brasil
Fernando Silva e João Cândido de Melo Sobrinho
Em 20.03.2021
Os direitos das pessoas estão em segundo plano. A prioridade é o ajuste fiscal.
A Constituição Federal de 1988 contém definições essenciais quanto a garantia dos direitos das pessoas, que podem ser sintetizados na dignidade da pessoa humana (Art. 1º) e nos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, que precisa caminhar para se “construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Art. 3º).
Contudo, diversas leis e emendas constitucionais estão em sentido contrário. Em um pequeno artigo, não é possível esgotar um tema amplo, complexo e controverso. Mas, é possível apresentar alguns aspectos para provocar debates e estudos impulsionadores de incidências políticas que favoreçam a manutenção da constitucionalização dos direitos humanos.
Preliminarmente, cabe recordar que a Lei de Responsabilidade Fiscal (N.º 101/2000) determina que “não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida, as relativas à inovação e ao desenvolvimento científico e tecnológico custeadas por fundo criado para tal finalidade e as ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias” (Art. 8o / § 2º). Entre as prioridades é destacado o pagamento do serviço da dívida e não o acesso à direitos.
No ano de 2016 duas emendas constitucionais foram aprovadas pelo Congresso Nacional. A Emenda Constitucional 93, que altera dispositivos presentes nas disposições transitórias, prorroga a Desvinculação das Receitas da União (DRU) e estabelece a desvinculação de receitas dos estados, Distrito Federal e municípios. Para se ter ideia do alcance da perversidade, estudo do INESC atesta que com a desvinculação de “30% das receitas das contribuições sociais, das contribuições de domínio econômico e das taxas da União” R$ 92 bilhões deixaram de ir para Educação e Saúde no ano de 2019.[2]
Em outros termos, o que já era ruim tende a piorar se não houver uma inversão na lógica do desenvolvimento brasileiro.
A Emenda Constitucional N.º 95/2016 (EM), instituidora de um novo Regime Fiscal, é totalmente contrária a garantia de direitos e tem impacto devastador ao reduzir drasticamente a destinação de investimentos nas políticas sociais. Em 2015 foram aplicados 19,8% do PIB, que recuará para 15,5% em 2026 (igual percentual de 1997) e para 12,5% do PIB no ano de 2036.[3] Além da diminuição mencionada, o PIB brasileiro caiu 4,1% de 2019 para 2020[4], sendo o maior recuo desde 1996. Em outros termos, o que já era ruim tende a piorar se não houver uma inversão na lógica do desenvolvimento brasileiro.
E os ataques aos direitos não cessam. A opção prioritária pela Responsabilidade Fiscal faz-se presente em três (03) emendas constitucionais (186, 187 e 188) apresentadas em 2019 pelo senador Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), líder do Governo Jair Bolsonaro no Senado Federal.
Os direitos das pessoas estão em segundo plano. A prioridade é o ajuste fiscal.
A abrangência das emendas é muito grande. Somente a PEC N.º 188 visa modificar 24 artigos, acrescentar 08 e revogar outros dispositivos constitucionais. A justificativa da emenda contém o propósito para um novo modelo fiscal. Tem por objetivo assegurar o fortalecimento fiscal da República e define a dívida pública como âncora fiscal de longo prazo. E afirma que os instrumentos de ajuste fiscal, a serem criados, servirão para que gestores possam adequar sua realidade fiscal aos anseios da população. Os direitos das pessoas estão em segundo plano. A prioridade é o ajuste fiscal. Para concluir a breve análise da referida emenda é transcrita uma parte da justificativa:
“Esta PEC desindexa, desobriga e desvincula, conferindo maior flexibilidade aos orçamentos públicos. Dentre as medidas temos: i) mínimo conjunto de saúde e educação; ü) redução da parcela PIS/Pasep que destinada ao BNDES para 14%; iii) desindexação do reajuste de emenda parlamentares; iv) supressão da obrigatoriedade de revisão geral anual da remuneração dos servidores públicos; e v) extensão da vedação de vinculação de receitas a órgão, fundo ou despesa, hoje prevista apenas para impostos, para qualquer receita pública, observadas determinadas exceções.”
A PEC 187 tem o foco em “instituir reserva de lei complementar para criar fundos públicos e extingue aqueles que não forem ratificados até o final do segundo exercício financeiro subsequente à promulgação desta Emenda Constitucional, e dá outras providências.” Observem que são dois propósitos: (i) reserva, por lei complementar, para instituir novos fundos; (ii) extinguir fundos específicos.
O art. 3º da PEC 187 é abrangente para União, estados, Distrito Federal e municípios. Particularizando o foco para a extinção de fundos, serão excetuados aqueles que são instituídos por Lei Complementar e apenas “até o final do segundo exercício financeiro subsequente à data da promulgação desta Emenda Constitucional”. E continua: “Não se aplica o disposto no caput para os fundos públicos previstos nas Constituições e Leis Orgânicas de cada ente federativo, inclusive no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias” do § 1º do mesmo artigo.
Aqui cabe uma preocupação essencial: o entendimento, salvo outra análise em contrário, é de que diversos fundos (nacionais, estaduais, municipais e outros relativos ao Distrito Federal), entre os quais, assistência social, dos direitos das pessoas idosas e para crianças e adolescentes estão ameaçados de existência. O alerta é ancorado na própria justificativa da emenda quando afirma que:
“Propomos a extinção de quase todos os Fundos Públicos atualmente vigentes, no âmbito da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, para que, até o final do segundo exercício subsequente ao da promulgação desta Proposta de Emenda Constitucional, os respectivos Poderes Legislativos de cada Ente Federado, ratifiquem ou não a sua existência, mediante Lei Complementar específica. Essa ratificação poderá ser realizada tanto por iniciativa dos respectivos Poderes Executivos e Legislativo de cada Ente.”
As exceções de extinção são os “Fundos Constitucionais por repartição de receitas, como os Fundos de Participação dos Estados e Municípios (FPM), bem como o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (FUNDEB) e o Fundo Nacional de Saúde (FNS).” Mesmo assim, a emenda, segundo a justificativa do senador Fernando Bezerra Coelho, visa “num primeiro momento a extinção de cerca de 248 fundos” permitindo “a desvinculação imediata de um volume apurado como superávit financeiro da ordem de R$ 219 bilhões, que poderão ser utilizados na amortização da dívida pública da União.”
Impressiona a quantidade de fundos públicos que podem ser extintos pela referida emenda constitucional 248 e, como alertado, entre os quais o da assistência social, crianças e adolescentes e pessoas idosas. Os direitos de milhões de brasileiras e brasileiros precisam ser preservados e não, simplesmente negados, negligenciados, atacados.
É imprescindível um aprofundamento dos estudos e debates para ficar evidenciado quais fundos serão extintos com a aprovação da PEC 187. Fica o registro de que a possível extinção do fundo da assistência social será um duro golpe para acabar, inclusive, com o repasse fundo a fundo – um dos principais pilares e conquistas no período pós CF de 1988 para a Política de Assistência Social – inviabilizando toda uma rede de atendimento. No caso dos fundos para pessoas idosas e o para a criança e adolescente, a extinção dos respectivos fundos implica em encerrar as possibilidades para captação de recursos via a dedução do Imposto de Renda.
A PEC 186 acabou de ser sancionada como Emenda Constitucional N. 109/2021 (modifica 11 artigos, acrescenta 08, revoga dispositivos e desvincula de forma parcial o superávit financeiro de fundos públicos) e faz a concessão, por apenas quatro (04) meses do auxílio emergencial por conta da pandemia da Covid-19. A perversidade da nova emenda é localizada em diversas partes. Mas, para ir direto ao ponto, recorre-se ao Art. 5º:
“Até o final do segundo exercício financeiro subsequente à data da promulgação desta Emenda Constitucional, o superávit financeiro das fontes de recursos dos fundos públicos do Poder Executivo, apurados ao final de cada exercício, poderá ser destinado à amortização da dívida pública do respectivo ente.”
Que o conteúdo fugazmente apresentado e comentado seja um alerta geral e, sobretudo, objetivo de críticas e aprofundamentos. A gravidade da situação exige um esforço nacional dos diversos conselhos (nacionais, estaduais, Distrito Federal e municipais), OAB, Ministério Público, partidos políticos, sindicados, organizações, movimentos sociais, associações municipalistas (prefeituras e câmaras municipais), Frente Nacional dos Prefeitos, Associação Brasileira de Municípios, CNBB, Conselhos de classe (Serviço Social, Psicologia) para conter a elaboração de uma nova Constituição através de emendas que buscam incessantemente pelo equilíbrio fiscal e a dívida pública, acarretando prejuízos irreparáveis aos direitos humanos.
Que as PECs em tramitação no Congresso Nacional e as emendas constitucionais em vigor passem por amplos debates e estudos jurídico e político, bem como os seus impactos sociais, agravados com a pandemia da Covid-19. Que as PECs em tramitação não avancem e as que estão em vigor sejam extintas.
Fernando Silva é mestrando em Educação, Culturas e Identidades. Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)/Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ) e integrante do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), Olinda – PE. Escreve quinzenalmente, aos sábados.jfnando.silva@gmail.com
João Cândido de Melo Sobrinho, advogado. jcalmirant@gmail.com
[2] Fonte: O Brasil com baixa imunidade Balanço do Orçamento Geral da União 2019. INESC. Brasília, abril de 2020.
[3] Fonte: DIREITOS VALEM MAIS – Coalizão pelo fim da Emenda Constitucional 95 (Apresentado por organizações qualificadas como Amicus Curiae à Ministra Rosa Weber e aos demais Ministros do STF)
[4] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/03/03/pib-brasil-2020-ibge.htm
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Foto destaque: Internet
Falou e disse! Parabéns, Fernando e João Cândido! Excelente conteúdo! Dione
Muito obrigado pela atenção
Muito didático e esclarecedor.
João Feitosa, Na luta, sempre
Fernando, seu artigo possibilita uma reflexão muito importante sobre a desestruturação que se vem operando relativo aos direitos humanos. Os frágeis direitos humanos que não foram consolidados em nisso país sofrem riscos sérios com essas medidas desumanas. Parabéns pelo artigo.
Vera, muito obrigado pela leitura e comentário. Vamos manter a luta.