No mês da mulher, uma vitória universal
Bruna Gärner*
Em 31.03.2021
No último dia 8, data na qual é comemorado o Dia Internacional da Mulher, a vitória foi de todos/as/es: a Justiça do Trabalho da 10ª Região, seguindo os entendimentos do Ministério Público do Trabalho e do Ministério Público Federal, confirmou a validade jurídica do processo de trainees exclusivo para pessoas negras implementado pelo Magazine Luiza em 2021.
Lembram dele? Um breve resumo: após ter identificado uma baixa representatividade de pessoas negras em cargos de liderança, a empresa decidiu abrir um processo seletivo para trainees voltado exclusivamente para pessoas negras em 2021. No entanto, o defensor público da União Jovino Bento Júnior não gostou da iniciativa e ajuizou uma ação civil pública contra o Magazine Luiza, entendendo que a empresa estaria promovendo o “racismo reverso”, em outras palavras, a discriminação contra pessoas brancas, o que seria contrário à igualdade prevista no artigo 5º da Constituição Federal de 1988.
Nessa ação, Jovino fez um pedido de tutela provisória de urgência (a famigerada “liminar”) para tentar que o processo seletivo em questão fosse suspenso até que a ação fosse sentenciada — o que pode levar ainda alguns anos, considerando a possibilidade de interposição de recursos e o tema de grande repercussão.
E onde entra o dia 8 de março nessa história? Primeiramente, foi nessa data que o juiz do caso decidiu sobre esse pedido de medida liminar. E aqui eu peço licença para transcrever o trecho principal da decisão que justificou o afastamento do pedido:
“O próprio Estatuto da Igualdade (Lei 12.288/2010), que concretiza, no plano constitucional, a efetivação do princípio da igualdade (artigo 5º, caput, da CF/88) e, no plano internacional, os direitos constantes na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (Decreto 65.810/1969), prevê a possibilidade de adoção de ações afirmativas pela iniciativa privada para a correção de desigualdades raciais. De acordo com o artigo 39 do Estatuto, ‘o poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas'”.
Nesse sentido, o juiz do caso entendeu que seria possível deduzir, a partir da documentação apresentada, que “o processo de trainees exclusivo para pessoas negras ’teve por escopo garantir a participação de jovens negros nos cargos de liderança da empresa’. De acordo com o referido documento, a demandada, muito embora seja composta por 53% de pessoas negras, somente possui 16% de líderes negros. A seleção proposta, portanto, de acordo com tal informação (e numa primeira análise dos fatos, frise-se), teria por finalidade a correção dessa desigualdade, o que é totalmente razoável perante o que propõe a Lei 12.288/2010 e demais normas que tratam da matéria”.
Ao fim, o juiz concluiu que “inexiste comprovação de que a conduta da ré poderá causar exclusão ou discriminação de determinados grupos de trabalhadores que reclamam proteção no mercado de trabalho”.
Mas muito além da coincidência de datas, a decisão marca uma vitória importante para políticas de diversidade, equidade e inclusão, nos lembrando da responsabilidade que empresas devem assumir para a correção de desigualdades a partir da adoção de ações sistematizadas de contrabalanceamento.
Inobstante não ser essa uma decisão final para o caso Jovino x Magazine Luiza, que ainda deve dar muito o que falar, ela nos mostra que, num país como o Brasil, tão marcado pelas diferenças, a ausência de reflexo dessas diferenças em posições de poder e tomada de decisão tem sido cada vez mais questionada. São pautas de reconhecimento e representação que vêm atravessando discussões sobre igualdade, e não poderia ser diferente numa realidade em que a diferença ainda é causa de desigualdades.
E o que seria isso se não responsabilidade social? Essa temática, cada dia mais em pauta ante o sucesso que as discussões sobre e (ESG) vêm alcançando (sigla em inglês para meio ambiente, responsabilidade social e governança corporativa), vai além do apoio financeiro direto ou indireto a projetos sociais — que também já se provou ser muito importante. A discussão avançou e ficar parado ou tentar barrar o futuro é decretar a própria falência, e o que não falta são exemplos disso. Falar em diversidade, equidade e inclusão é falar sobre sustentabilidade.
Mas é importante destacar: há urgências e urgências. E, para identificá-las, é necessário desconstruir preconceitos e olhar para a realidade. Enquanto homens e mulheres brancas ocupam juntos cerca de 70% dos cargos de liderança em empresas em São Paulo, em 2020, homens negros estão nessas posições numa proporção de cerca de 2%, e mulheres negras em cerca de 1,5% (Caged, 2019). Por outro lado, elas formam mais de 68% da força de trabalho doméstico remunerado no país (Ipea, 2018), cuja essencialidade contrasta com a remuneração, que sabemos ser infimamente inferior, quando há.
Mulheres negras são a base da sociedade. Não por acaso Ângela Davis nos mostra que, quando uma mulher negra se movimenta, ela movimenta toda a estrutura.
Se hoje a massiva maioria dessa parcela da população encontra-se em subempregos, empregos informais ou mesmo desempregada ou exercendo atividades não remuneradas, como ainda são as domésticas, é evidente que iniciativas como essa adotada pelo Magazine Luiza, mais que bem vindas, são fundamentais para a correção dessas distorções. E nisso consiste a responsabilidade social: empresas cumprindo seu dever de promover a melhoria das condições de vida em sociedade.
E, só para finalizar, sobressalta o fato de que é uma grande empresa brasileira liderada por uma mulher, uma das pioneiras no tema, a reconhecer a responsabilidade da companhia perante a desigualdade racial fundante de nosso país, e comprar a briga. O assunto ainda é muito polêmico no meio corporativo, assim como costuma ser qualquer inovação que proponha mudanças estruturais, e por isso mesmo é importante ter em vista quem está tomando a frente.
Longe de romantizar a iniciativa, a própria Luiza Trajano já declarou algumas vezes que a ação não teve como propósito mudar o país, mas mudar uma realidade da empresa, e não esperava tanta polêmica. Mas reconhece a existência do racismo estrutural, uma habilidade que, junto à expertise econômica e comercial, tende a ser cada vez mais exigida do empresariado brasileiro ou de multinacionais que pretendam atuar no país. Para quem quiser entender mais, recomendo a leitura do livro “O que é racismo estrutural?”, de Silvio Almeida, autor que cunhou o termo e desenvolveu o conceito. Ainda vamos ouvir falar muito disso.
A ideia que fica é a de que só se pode caminhar para frente. O futuro precisa ser construído por e para todos/as/es, sob pena de não ser futuro.
*Bruna Gärner é advogada de PGLaw, atua na área consultiva empresarial, prestando assessoria em questões relacionadas a direito das mulheres, ética empresarial e governança corporativa.
Artigo publicado originalmente no portal da revista Consultor Jurídico.
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Foto destaque: Istoé Dinheiro