Há narrativas e narrativas. Mentira, isso é outra coisa!
Alcivam Paulo de Oliveira*
Em 21.06.2021
Falei de Wlliams, amigo de infância em Peixinhos, na crônica “Mente que eu te escuto”. Volto a ele para falar de “narrativa”, palavra que saltou da academia para o jornalismo e daí para as mesas de bar e grupos de zap. E se aplica a tudo: narrativa política, narrativa religiosa e até narrativa científica.
Williams era um narrador de mão cheia. Suas estórias tinham um enredo, cada fato era contado na sequência exata, se encaixava direitinho. As personagens, os suspenses, a cena toda contada como se tudo tivesse sido vivido exatamente como descrito. A gente sabia da distância entre o que ele contava e o que ele tinha vivido, era uma quase-mentira, mas, nem por isso, deixávamos de prestar atenção, queríamos saber o fim da estória. Sua narrativa era maravilhosa!
Todas as vezes que escuto um jornalista ou um político falando: a narrativa de fulano; a narrativa do partido; a narrativa dos negacionistas, etc., penso sempre que eles estão querendo dizer: essa estória que fulano ou sicrano conta tem uma lógica, mas não é exatamente a verdade! Transformam todos os narradores em contadores de estória, tal como Williams. No mínimo, a apresentação de um ponto de vista que, necessariamente, se afasta da verdade.
Dizem-me as referências literárias e epistemológicas que narrativa é a descrição ou explicação da realidade, com personagens e ações que se encadeiam na apresentação de uma história ou estória. Por exemplo, quando não se sabe racionalmente o que é um fenômeno natural ou social, se cria um “mito” para explicar expondo o que a mente acredita ser. Mito é um gênero literário muito presente na literatura religiosa, na mitologia grega e romana, com correspondentes em todos os grupos étnicos da humanidade: de Amasterasu, deusa mãe de todas as famílias nobres do Japão, representada em sua bandeira pelo círculo vermelho, aos deuses Tupã e Jaci na mitologia tupi-guarani, passando, claro, pela mitologia judaico-cristã. Marcelo Gleiser, no livro “A dança do universo”, apresenta um amplo panorama sobre os mitos da criação do mundo.
A filosofia e depois a ciência, no oriente e no ocidente, trouxeram o conhecimento racional. A partir delas, passa a se conhecer não pela fé, mas pela razão. Pelo menos é o que muitos acreditavam e acreditam. Mas, aí vieram duas constatações que ameaçam essa crença.
Primeiro, toda linguagem tem autonomia em relação ao seu usuário, pois, ao usá-la, a pessoa termina sendo enquadrada por ela. Ou seja, quando falo não digo o que quero, mas o que a linguagem que eu uso, permite. Não raro, termino dizendo o que não quero. É assim quando um desavisado usa a palavra “denegrir” para se referir a um ato de alguém que busca manchar sua pessoa. Nesse caso, ele está dizendo que o outro quer manchar seu caráter, deixá-lo da cor negra. Não creio que a palavra “denegrir” tenha sido criada por um negro. Assim como o verbo “judiar” não deve ter sido criado por um judeu, para se referir ao ato de maltratar. Essas e outras palavras nos fazem afirmar coisas (ser negro não é bom; maltratar é coisa típica de judeu) que não queremos. As palavras têm personalidade.
Primeiro, toda linguagem tem autonomia em relação ao seu usuário, pois, ao usá-la, a pessoa termina sendo enquadrada por ela. Ou seja, quando falo não digo o que quero, mas o que a linguagem que eu uso, permite. Não raro, termino dizendo o que não quero. É assim quando um desavisado usa a palavra “denegrir” para se referir a um ato de alguém que busca manchar sua pessoa. Nesse caso, ele está dizendo que o outro quer manchar seu caráter, deixá-lo da cor negra. Não creio que a palavra “denegrir” tenha sido criada por um negro. Assim como o verbo “judiar” não deve ter sido criado por um judeu, para se referir ao ato de maltratar. Essas e outras palavras nos fazem afirmar coisas (ser negro não é bom; maltratar é coisa típica de judeu) que não queremos. As palavras têm personalidade.
Segundo, não é possível para a ciência chegar à verdade absoluta. Nas ciências sociais e humanas, a impossibilidade de se reduzir a realidade histórica e social a um experimento de laboratório tornaria o ato de conhecer uma interpretação, seus conceitos tornam-se relativos. Assim, a sociologia não pode afirmar nenhuma verdade absoluta, porque o sociólogo traz consigo pontos de vista, óticas, ideologias, fazendo com que sua análise seja parcial. Nem Durkheim, famoso pelo seu conceito de fatos sociais, conseguiu desconstruir essa crítica. Nem tampouco Marx ou Max Weber, os três pais da sociologia.
Nas ciências naturais, a impossibilidade de se obter (na física, biologia ou química) uma medida exata de qualquer coisa, tornaria o ato de conhecer uma aproximação da verdade. Nem o micrômetro ou qualquer outro instrumento garante 100% de precisão. Mesmo se garantir em 99,999999%, esses 0,000001% farão muita diferença. Assim, a realidade natural tende a ser o que seu conceito diz, mas nunca é, nunca se tem certeza de que ela é exatamente aquilo.
Agora, que essa imprecisão seja igualada ao mito, é outra coisa. Uma coisa é ter certeza que o mito ou um livro de ficção sejam narrativas; outra coisa é dizer que a lei da gravidade é, igualmente, uma narrativa; uma coisa é dizer que a interpretação dos fatos dada por um marqueteiro político é uma narrativa; outra coisa é dizer que uma pesquisa social, com um desenho amostral adequadamente construído e resultados submetidos a teste de variância, seja igual a uma simples narrativa; uma coisa é dizer que os resultados alcançados por tentativas e erros, de forma assistemática, por um médico em seu consultório é uma narrativa, outra coisa é dizer que um ensaio clínico duplo-cego é igualmente, uma narrativa.
Não se pode simplesmente jogar no mesmo saco as duas coisas. Por quê? Se não pela sistematicidade que procura diminuir os erros e a parcialidade, pelo menos, em função do pragmatismo, da coerência dos resultados.
Pois essa prática de igualar todas as falas chamando-as, indiscriminadamente de narrativas, é o que tem acontecido. De repente alguém fala na TV ou nas redes sociais: a narrativa da ciência é essa ou aquela. Enquanto a narrativa dos negacionistas é aquela ou essa. Posso dizer que a lei da gravidade, ou os conceitos históricos (tirania, genocídio, democracia, ditadura) são narrativas, tanto quanto a narrativas dos negacionistas? Se puder, significa dizer que todo mundo e qualquer um pode construir sua narrativa do mundo: a terra é plana; os deuses eram astronautas; o evolucionismo é tão verdadeiro quanto o criacionismo; os governos do partido “a” foram só corrupção; o governo do presidente “b” é o melhor do mundo e vice-versa. A verdade poderá ser servida a “la carte”, ao gosto do freguês.
É o relativismo total. Diante dele, sucumbimos à instabilidade. Não será possível aplicar, em nenhuma situação, a lei da causa e efeito. E sem a lei da causa e efeito, não podemos prever o que irá acontecer amanhã, pode acontecer tudo, inclusive nada! Não há valores aos quais possamos nos agarrar para decidirmos o certo e o errado. E quando nos vier aquela pergunta que Miguelim (personagem sedutor de Guimaraes Rosa no romance “Noite do sertão”): como eu sei que o que vou fazer é certo ou errado? Ficaremos mudos. Ou então teremos tantas possibilidades de respostas que não saberemos o que escolher.
Uma coisa é ter a consciência sobre a impossibilidade de medições exatas e saber que isso fará todos os motores se desgastarem e quebrarem mais cedo ou mais tarde; que todos os remédios têm efeitos colaterais, são feitos para curar, mas podem fazer mal também; que as pesquisas sociais indicam tendências na realidade, mas trazem erros. Outra coisa, é equiparar a “narrativa” da ciência com outras narrativas, tornando tudo farinha do mesmo saco. É isso que querem os negacionistas para dizer que se tudo é narrativa, a narrativa mais coerente pode ser qualquer uma. Mas, narrativa é narrativa. Mentira, é outra coisa!
*Alcivam Paulo de Oliveira é professor. alcivampaulodeoliveira@gmail.com