Karapiru Awa Guajá, líder indígena que sobreviveu a massacre nos anos 70, morre de covid-19
Mônica Nunes*/Conexão Planeta
Em 22.07.2021
Mais uma perda irreparável para os povos indígenas. Depois de apresentar sintomas de covid-19, Karapiru, um dos líderes do povo Awa Guajá, foi levado para um hospital, onde foi internado em estado grave. Mesmo tendo tomado as duas doses da vacina contra o coronavírus, ele não resistiu à agressividade da doença e morreu na noite de 16 de julho.
Karapiru vivia na aldeia Tiracambu, em Bom Jardim, no Maranhão. E, assim, devido ao projeto genocida do governo Bolsonaro, se encerrou a trajetória de um homem que sobreviveu a um massacre nos anos 70, no qual quase toda sua família foi dizimada.
“Karapiru viu o genocídio de frente e carregou suas marcas no corpo, porém não resistiu à covid-19. Já havia tomado as duas doses da vacina, mas diante dos altos níveis de circulação do Sars-CoV-2 que o Brasil ainda mantém, a proteção não foi suficiente”, lamentam indigenistas, antropólogos, indígenas e amigos, que assinam a nota de falecimento que reproduzo no final deste post. Vale muito a leitura.
Cerca de vinte e sete anos depois, Karapiru reviveu sua própria história no filme Serras da Desordem, a convite do diretor Andrea Tonacci (no final deste post, você pode assistir ao filme, na íntegra).
Dez anos de solidão
No final da década de 60, a descoberta de uma jazida de ferro – a maior do planeta – no território dos Awa Guajá sentenciou sua destruição. Depois da construção de uma mina, veio a ferrovia de 900 quilômetros que cortou suas terras para levar os minérios até o porto, no litoral, e levou milhares de invasores não-indígenas à região. Para estes, os indígenas isolados atrapalhavam seus planos e, por isso, precisavam ser dizimados.
E começaram os assassinatos, executados de diversas formas. Um fazendeiro local, por exemplo, enviou-lhes um ‘presentinho’: farinha misturada com veneno de formiga. Outros foram baleados, como Karapiru e sua família.
Em 1978, apavorado e muito ferido, ele conseguiu escapar de um ataque em sua casa: sua esposa, um filho, a filha, a mãe, irmãos e irmãs, foram assassinados. “Não tinha como curar a ferida. Eu não podia colocar qualquer medicamento nas minhas costas, e sofri muito”, contou à Fiona Watson, da Survival International.
“A bala estava quente nas minhas costas, sangrando. Eu não sei como não ficou cheia de insetos. Mas eu consegui escapar dos brancos”. Na época, o indígena acreditou que era o único sobrevivente da família.
A maior parte dos conteúdos que contam sobre sua saga dizem que ele fugiu sozinho, mas, em 2007, o antropólogo André Toral – que esteve com Karapiru (a foto acima foi feita por ele) – publicou texto sobre o filme de Tonacci, no qual acrescenta mais uma informação. Quando fugiu do massacre, o indígena levou consigo uma menina muito pequenina, também sobrevivente dos ataques e que não era de sua família, mas morreu logo em seguida.
“Imagine as dificuldades em criar uma criança de colo no meio do mato e, ao mesmo tempo, fugir dos que o perseguem. Como resultado das privações por que passavam, a criança, uma menina, morre e é sepultada em algum lugar das serras e chapadas do Brasil central percorridas por Karapiru e que ligam o Maranhão, Bahia, Tocantins e Minas Gerais”.
Karapiru viveu em fuga durante dez anos, caminhando por colinas, planícies, dunas, grandes rios e serras, até que, em 1988, “as muitas queimadas da região onde estava fizeram-no procurar abrigo na vazante do rio Grande, noroeste da Bahia. Lá ele foi contatado de forma espontânea por um morador da região”. relata Toral. (…) “Foi abrigado na casa de um morador do patrimônio de Santa Luzia, um assentamento do INCRA no norte da Bahia”, a mais de 600 quilômetros de seu ponto de partida.
Reencontros
Toral foi um dos diversos antropólogos da Bahia e de São Paulo chamados para identificar Karapiru. Ele conta:
“O sertanista Sidney Possuelo, na época titular da Coordenadoria de Índios Isolados da Funai, e responsável pelo atendimento aos grupos que não mantém contato ou que não querem ter contato com brancos, instalou Karapiru na sua casa e começou a trazer índios de diversos grupos de língua Tupi. Finalmente, foi chamado um indígena Guajá, tradutor da Funai, que não pode vir. Em seu lugar, veio um rapaz que viveu com os brancos: Txiramoko. Ele pode, finalmente, identificar o pai graças às marcas de chumbo de um ferimento causado por um tiro num outro ataque de fazendeiros antes da separação dos dois”.
O encontro aconteceu em 1992 e foi muito emocionante para Karapiru: o jovem não só entendia muito bem a sua língua, como “ainda usou uma palavra Awá que transformou instantaneamente sua vida: o chamou de pai”, relata a Survival International. Txiramoko ou Xiramukû rapidamente convenceu o pai a acompanhá-lo para viver na comunidade Awá de Tiracambu. E assim foi.
Segundo Toral, a aldeia havia sido formada por “diversos grupos aldeados em caráter permanente pela Funai e que vivem um cotidiano difícil numa Terra Indígena com problemas de invasão e que tem como vizinhos a população rural do Maranhão e o gigantesco projeto de extração mineral da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD)”.
Como se vê, a Vale sempre infernizou a vida dos povos da floresta com seu negócio insustentável.
Líder, caçador e ativista
Em Tiracambu, Karapiru constituiu outra família e se tornou “uma figura central na comunidade: muito amado e querido por seus parentes”. Era excelente caçador e compartilhava suas habilidades únicas pautadas pelo profundo respeito à floresta e por sua “incrível sabedoria sobre a vida“.
Sua preocupação com o bem-estar de seus parentes Awa Guajá era constante, em especial dos indigenas isolados (saiba mais no link sobre o povo Guajá, no final deste post). Por isso, participava de protestos pela retirada de madeireiros e fazendeiros ilegais dos territórios de sua etnia e de outros povos indígenas. E também contra as políticas antiambientais e genocidas do governo Bolsonaro.
“Ele se juntava a esses protestos com seu arco e flecha, penas de urubu e tucano decorando seus braços, e com energia e carinho por aqueles que estavam ao seu redor e pela vida pela qual lutavam”. relata a Survival International, que finaliza:
Sabia bem quem era aliado e quem era invasor, entre os não-indígenas. Os aliados ele recebia “com carinho, um sorriso contagiante no rosto, um tapinha confiante no peito e dizendo: Karapiru, katu, katu?”, que, em tradução livre, significa: “Eu sou Karapiru, tudo bem? Como vai você?”.
A história da história
Em 2015, a convite do cineasta italiano Andrea Tonacci, o líder indígena protagonizou sua própria história no filme Serras da Desordem lançado em 2008 no Brasil (no final deste post, assista ao filme, na íntegra).
É uma reconstituição da experiência trágica de Karapiru até reencontrar seu filho e parentes Guajá, encenada por ele e indígenas dessa etnia.
Para contar história tão comovente – documentário com pitadas de ficção -, Tonacci também usou imagens de arquivo de telejornais e fotos da época.
Sem narrador, nem diálogos, parece que o diretor se solidarizou com Karapiru e por meio do silêncio que o acompanhou por uma década. “São imagens que se sucedem, mostrando de forma precisa o cotidiano de Karapiru e essa situação estranha, de uma pessoa isolada no meio do Brasil”, define Toral. “Fala- se de exclusão social por meio do isolamento físico de Karapiru. Seu destino, no fundo, é o de sua etnia”.
No final, Tonacci revela sua equipe ao lado de Karapiru. E também permite que a câmera se desloque do protagonista solitário na mata para o topo das árvores, no momento em que um avião militar passa rente às copas.
“Uma grande história, bem contada” (…) “a gente fica pensando em Karapiru muito tempo depois da luz do cinema acender. Ficamos pensando nesses muitos Karapiru brasileiros, perdidos na mata, escutando o barulho da locomotiva”, relata o antropólogo Toral.
Lembrei do líder indígena, pensador e autor Ailton Krenak, comentando – em entrevista a respeito do prêmio Juca Pato, que acabara de ganhar – sobre o trem da Vale que passa de hora em hora, todos os dias, ao lado de sua aldeia, na estrada que contorna o Rio Doce (Watu, para ele), levando a montanha embora.
Repercussão
Para finalizar este texto em homenagem à Karapiru, selecionei três depoimentos sobre a morte do líder indígena, que me tocaram: do cineasta e indigenista Vincent Carelli (criador do Vídeo nas Aldeias), do sociólogo e jornalista indigenista Felipe Milanez, do antropólogo Adelino Mendez e do crítico de cinema José Geraldo Couto, que escreveu sobre Serras da Desordem em 2016.
“Ontem partiu Carapiru, esta doçura de pessoa que foi personagem do filme ‘Serras da Desordem’,
do Andrea Tonacci, de covid, apesar de ter tomado as duas doses da vacina. Tristeza!”
VINCENT CARELLI
“GENOCÍDIO! Morreu Karapiru Awa Guajá, sobrevivente de massacre, de genocídio de madeireiros no Maranhão, assassinado agora por Covid-19. Sua história heróica de sobrevivência foi magistralmente contada por Andrea Tonacci em ‘Serras da Desordem’. Que esfacelamento de mundos! Que tristeza!
Que a memória de Karapiru e de Tonacci ajude a iluminar algum futuro possível!”
FELIPE MILANEZ
“Morre Karapiru Guajá, de COVID! Karapiru foi das pessoas mais doces e sofridas que conheci. Dono de uma história incrível que representa a luta de todos os povos indígenas. Uma luta pela vida, pela liberdade. Karapiru partiu ontem. Mesmo estando vacinado com as duas doses da vacina, a doença o levou. Ele inicia sua o’ho iwá béh, sua viagem para o “céu do céu”… Ah, um herói desconhecido, vítima da invisibilidade conferida pelo Estado brasileiro aos povos da floresta, aos povos primeiros. Para conhecer melhor sua vida e sua luta, assistam ao documentário ‘Serra da Desordem’, de Andrea Tonacci de 2006″.
ADELINO MENDEZ
Carapiru, o indígena Awa Guajá que protagoniza sua própria história no belíssimo
“Serra da Desordem”, de Andrea Tonacci, morreu ontem de covid.
São tantas tristezas que se acumulam nesse fato que não há mais o que dizer”
JOSÉ GERALDO COUTO
A seguir, o filme Serras da Desordem e a nota de falecimento assinada por por indigenistas, antropólogos, indígenas e amigos de Karapiru, entre eles Vincent Carelli e a montadora Cristina Amaral (uma das mais respeitadas do Brasil), ex-companheira de Andrea Tonacci que, desde sua morte, em 2016, está comprometida com a curadoria de sua obra.
Nota de falecimento
Karapiru, ou “Carapiru” como acabou mais conhecido, faleceu em Santa Inês, no interior do Maranhão, na última sexta-feira, 16 de julho de 2021. A história da sua vida é extraordinária.
Pertencente ao povo Awa Guajá, vivia isolado na mata com sua família, quando, nos anos 1970, sofreu uma emboscada de fazendeiros que circulavam na região. Ao ataque, sobreviveram apenas ele e um de seus filhos. O menino foi capturado pelos agressores. O pai fugiu.
Passou dez anos escondido, sempre em movimento, sempre fugindo dos não indígenas. Percorreu sozinho centenas de quilômetros, do Maranhão até o norte da Bahia, onde, em meados dos anos 1980, topou com moradores de uma comunidade rural na cidadezinha de Angical.
O seu aparecimento repercutiu na região, atraiu a atenção da Fundação Nacional do Índio e da imprensa do país inteiro. Ninguém sabia quem era ele, que língua falava ou por que estava ali.
Em uma das inúmeras tentativas de solucionar o mistério, a FUNAI decidiu levar um intérprete Awa Guajá para falar com ele. Foi então que o rapaz, ao encontrar com Karapiru, olhou-o bem no rosto, reconheceu as marcas dos tiros em seu corpo – cuja dor ele carregaria pelo resto da vida – e concluiu: “Ele é meu pai”.
O intérprete era, de fato, seu filho que fora abduzido anos antes. A partir desse reencontro, num movimento impensável do acaso, ele pôde restabelecer contato com a família e enfim voltar a viver junto de seu povo.
Na vida de Karapiru, a violência e a destruição promovidas pelo Estado brasileiro contra os povos indígenas foram uma constante ameaça. Sua fantástica saga de fuga tem uma dimensão que a maioria de nós sequer cogita experienciar.
Apesar de ter ganhado o imaginário nacional na época, chegando a ser contada em filme décadas depois, essa história ecoa incontáveis outras, vividas tanto pelos Awa Guajá quanto por todos os povos indígenas no Brasil. Um processo longo e contínuo de genocídio que permanece, em sua maior parte, alienado do resto da sociedade.
Para todos que tiveram ou terão a oportunidade de conhecer essa história, talvez o processo seja uma das maneiras mais intensas de superar essa invisibilidade em relação ao genocídio, de conferir-lhe materialidade, historicidade, de acessar e entender o ponto de vista de suas vítimas.
Karapiru nos ensinava tudo isso, e ensinava com a doçura que lhe é característica: sempre sorrindo, sempre carinhoso com quem convivia com ele, uma doçura indestrutível, mesmo depois de tantas perdas, fugas, tanta violência vivida. A doçura como resistência.
Karapiru viu o genocídio de frente e carregou suas marcas no corpo, porém não resistiu à covid-19. Já havia tomado as duas doses da vacina, mas diante dos altos níveis de circulação do Sars-CoV-2 que o Brasil ainda mantém, a proteção não foi suficiente.
Os Awa Guajá têm, desde o início da pandemia, tentado se manter apenas em seus territórios, restringindo suas saídas apenas para casos de emergência de saúde. Houve, em 2020, também um esforço de parceiros e aliados para que fosse possível a manutenção desse isolamento e que houvesse um controle de entrada e saída de pessoas das terras indígenas, fossem elas indígenas ou não-indígenas.
As estatísticas disponíveis hoje sobre a pandemia e os povos indígenas no Brasil, como as divulgadas pela Apib – Articulação dos Povos Indígenas do Brasil e pelo Movimento Alerta, mostram que toda proteção e cuidado foram e continuam sendo fundamentais.
A tragédia da pandemia no país, que está atingindo centenas de milhares de famílias, tem um forte viés racial e étnico, com os indígenas tendo proporcionalmente o maior número de casos, de internações e de vítimas fatais.
Em 2021, as vacinas trouxeram a esperança de que a pandemia poderia ser controlada. Mesmo com a disseminação de informações falsas, gerando desconfiança em relação a elas, inclusive entre os povos indígenas, os Awa Guajá aderiram à vacinação de modo generalizado assim que as doses chegaram nas aldeias. Porém, como temos aprendido nos últimos meses, as vacinas protegem a sociedade e não os indivíduos.
As mortes evitáveis (o Movimento Alerta publicou estudo a respeito) continuam acontecendo aos milhares e o vírus continua circulando muito, com o agravamento de um consenso perigoso de que o pior já passou. Nessa pressão crescente pela retomada de eventos e atividades, no momento em que os riscos também aumentam, os povos indígenas enfrentam ainda uma das maiores ameaças aos seus direitos das últimas décadas, com a perspectiva de aprovação pelo Congresso Nacional do PL 490 e da adoção de jurisprudência favorável à tese do Marco Temporal pelo Supremo Tribunal Federal.
As mobilizações e os protestos – quase sempre a única ferramenta que esses sujeitos dispõem para se fazerem visíveis e lutar por seus direitos, seus territórios, tal como assegurados na Constituição Federal – tão necessários neste momento, têm levado indígenas de todo o país a saírem de suas aldeias, colocando-se conscientemente em risco, em nome da luta.
Isso inclui os Awa Guajá. Eles não querem que essa violência – a que Karapiru e seu povo enfrentaram a vida toda – continue a se perpetuar.
Karapiru foi, e o seu povo permanece sendo, testemunha de uma política de invasão, ocupação dos territórios indígenas, muita violência, doença e assassinato. Uma política da morte, para a qual a pandemia é, sobretudo, uma ferramenta oportuna, na medida em que contribui para a manutenção de seu projeto de aniquilação.
Expressamos aqui a nossa indignação, saudade, nossos sentimentos e solidariedade ao povo Awa Guajá neste momento difícil.
Alexandre Werá, realizador audiovisual e ativista Mbya
Cristina Amaral, montadora
Eliane Cantarino O’Dwyer, antropóloga
Fábio Costa Menezes, realizador audiovisual
Flávia de Freitas Berto, professora e linguista
Guilherme Ramos Cardoso, antropólogo
Lirian Monteiro, antropóloga
Louis Carlos Forline, antropólogo
Marina Maria Silva Magalhães, professora e linguista
Paula Sobral, antropóloga
Renata Otto, antropóloga
Uirá Felippe Garcia, professor e antropólogo
Vincent Carelli, indigenista e cineasta
Fontes: Survival International, CIMI
*Mônica Nunes – Jornalista com experiência em revistas e internet, escreveu sobre moda, luxo, saúde, educação financeira e sustentabilidade. Trabalhou durante 14 anos na Editora Abril. Foi editora na revista Claudia, no site feminino Paralela, e colaborou com Você S.A. e Capricho. Por oito anos, dirigiu o premiado site Planeta Sustentável, da mesma editora, considerado pela United Nations Foundation como o maior portal no tema. Integrou a Rede de Mulheres Líderes em Sustentabilidade e, em 2015, participou da conferência TEDxSãoPaulo.
Texto publicado originalmente no dia 20.07.2021 (https://conexaoplaneta.com.br/blog/karapiru-awa-guaja-lider-indigena-que-sobreviveu-a-massacre-nos-anos-70-morre-de-covid-19/#fechar)