O passado me dando esperança
Alcivan Paulo de Oliveira*
Em 22.09.2021
… Será que ainda existem lugares e pessoas que trabalham formando militantes, além de Olavo de Carvalho? Será que existe religião que busque algo para além de cura de doenças, superação de crise no casamento, sucesso financeiro ou qualquer necessidade individual?
Primeiramente, peço perdão pelo tom tão pessoal. De toda forma, posso ter a justificativa que todo universal nasce sempre de um particular. Vamos lá. Sabe aqueles dias em que você acorda no passado? Que não consegue controlar as imagens vindo à memória, lembrando de coisas que nem sabia que sabia? Hoje amanheci assim: vivendo nos anos 80 e 90 do século passado, no tempo de cristão engajado e militante, o tempo das pastorais e da evangelização que subverteu a teologia e a sociologia marxistas!
A entrada na universidade e o engajamento no Movimento Estudantil me levaram para essa vida de militante cristão. Fui integrante da Pastoral Universitária (PU), nos anos 80 e 90. Da primeira reunião, numa sala da Rádio Espinharas de Patos (PB), em 1983 – quando o apoio da Diocese de Patos à nossa greve no Campus VII da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) se transformou na formação de um Grupo de PU – à assessoria da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), entre 1995 e 1999, vivi um tempo de rica experiência e aprendizado pedagógico, político, teológico, enfim, de enriquecimento daquilo que Bourdieu chama de capital cultural.
A Igreja Católica, a partir da segunda metade do século passado, vivenciou no mundo, mas, especialmente na América Latina, um protagonismo sem precedentes em termos de intervenção na sociedade. A Ação Católica (AC), surgida na França, chegou na América Latina e foi “decolonizada”, subvertendo, ao mesmo tempo, o marxismo e a teologia. Uma das origens dessa subversão está na Juventude Católica no Brasil, mais especificamente na Juventude Universitária Católica (JUC), que se engajou na política como se quisesse, assim, materializar os versículos 1 e 2 do capítulo 12 da Carta de Paulo aos Romanos. O teólogo peruano Gustavo Gutierrez coletou essas e outras experiências e construiu uma reflexão teológica batizada com o título de Teologia da Libertação, publicando o livro em 1971. E aí estava o ponto inicial da Teologia da Libertação (TDL).
A TDL levou a sério os mandamentos do Concilio Vaticano II e inculturou o evangelho, interpretando as escrituras a partir do chão da América Latina: é para o povo colonizado e explorado que o Cristo deveria se revelar. É da vida da vida desse povo, e não da tradição eclesiástica europeia, que deveria partir a leitura da palavra de Deus. Nada de tão inédito assim, porque a Europa já tinha feito isso, do contrário, nunca teríamos uma imagem de Jesus com olhos azuis e cabelos loiros… O inédito é que dessa vez a palavra de ordem era: seguir Jesus é antecipar as coisas boas de sua promessa, de um mundo mais justo e fraterno, e não ficar adorando o altar! Ou seja, é fazer com que haja mais justiça e fraternidade, menos miséria e violência contra os empobrecidos em nosso tempo.
Mas, aí tinha que saber qual era esse chão, como era a realidade, para além das versões oficiais. Então, a TDL foi buscar Marx e os sociólogos que faziam uma leitura crítica da realidade e com isso, subverteu o marxismo. A religião, de ópio do povo, passou a ser sua luz!
Extinta pela Confedereação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em 1967, a JUC deixou suas sementes e a Ação Católica foi crescendo. Nos anos 70, era a Igreja a referência maior na luta contra a ditadura militar. Seus bispos e padres e, principalmente, seus fiéis, agora batizados de agentes de pastoral, fizeram uma revolução social e política, ao modo de fogo de monturo. As diversas pastorais, como a Pastoral Operária, a Pastoral da Comunicação, a Pastoral da Juventude do Meio Popular e diversos Movimentos, a exemplo do Movimento da Juventude do Meio Popular e as Comunidades Eclesiais de Base, eram seminários no sentido estrito do termo… eram ninhos onde chocavam-se militantes: pessoas que assumiam o engajamento político rebatizado como “busca pela libertação dos oprimidos”, motivada pela fé em Jesus Cristo. E pouco a pouco essa geração de militantes foi ocupando lugares de mediação histórica, criando organizações, reconstruindo a ação política.
Nos anos 70, 80 e 90, essa dinâmica social e cultural mexeu com estruturas. Tal como Sócrates, “subverteu” jovens. Foi além, subverteu donas de casa, trabalhadores do campo e da cidade e professores; gente pobre, mas também o povo da classe média; leigos, mas também bispos – talvez o melhor exemplo esteja na conversão de Dom Helder Câmara – padres, religiosas e religiosos.
Como não poderia deixar de ser, essa “subversão” das pessoas abalou estruturas antigas, notadamente da própria Igreja, mas também da organização política e social. Ela criou novas estruturas, novos sujeitos sociais. Como falar das origens do Movimento dos Sem Terra (MST), que ocupou o lugar das Ligas Camponesas, sem citar o trabalho da Comissão Pastoral da Terra? Com falar do Partido dos Trabalhadores sem citar o trabalho da Pastoral Operária? Com falar da Lei da Ficha Limpa sem considerar a Comissão Nacional de Justiça e Paz?
Pois bem, acordei com as musicas de Zé Vicente na cabeça: “Baião das Comunidades”, “Pão em todas as mesas”, “Povo novo” e tantas outras; acordei com os nomes de padres e militantes da PU, com imagens dos encontros de formação, aonde se rezava pedindo coragem para enfrentar a opressão e se estudava teologia, sociologia e política; com reuniões em que pequenos grupos partilhavam a vida, o pão, mas também as angustias, os conflitos, fazendo o que chamávamos de “Revisão de Vida”, seguindo o método Ver-Julgar-Agir; acordei lembrando de gente que chegava na PU (e certamente em todas as pastorais e movimentos) achando que iria encontrar pieguismo e terminava era mudando a si mesmo – às vezes de curso na universidade (queria um curso mais engajado) -, às vezes de ideologia e às vezes de vida, por que aprendiam a construir (ou reconstruir) um projeto de vida. Sair da engenharia Florestal para fazer Teologia; sair de computação para fazer Ciências Sociais; sair de Contabilidade para fazer Pedagogia; estudar Agronomia, mas estagiando no MST; se formar em Administração e ir trabalhar na periferia de uma grande cidade. Ou ficar na universidade, mas optar pela extensão, se tornar militante da extensão para seguir Paulo Freire, como dizia um companheiro da PU: sobretudo, manter-se sempre ético!
A saudade é pessoal, ela vem em função do que aconteceu comigo, mas também vem do que acontece em nossa sociedade… Será que ainda existem lugares e pessoas que trabalham formando militantes, além de Olavo de Carvalho? Será que existe religião que busque algo para além de cura de doenças, superação de crise no casamento, sucesso financeiro ou qualquer necessidade individual?
Mas, a saudade é também tração, força que vem de trás para a frente e que a Modernidade quis acabar, jogando no lixo toda e qualquer tradição ao afirmar com o seu próprio nome: só vale o que é de hoje! E é essa força que me faz, não um saudosista, morando no passado, mas alguém que traz o passado consigo. Quero passar o dia de hoje sentindo o passado em mim, o passado me dando as coordenadas, a régua e o compasso para acreditar, como diz Zé Vicente, ser “gente nova vivendo a união; (ser) povo semente de uma nova nação”, o passado me dando esperança!
*Alcivan Paulo de Oliveira é professor.
Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou Disse.