Saudades de viajante    

Por

Fernando Silva*

Em 23.09.2021

Para iniciar um bate-papo escrito, deixa-me apresentar viajante, o último cachorro de estimação da minha família matuta. Segundo minha irmã, Neide, e Manuel, meu irmão, nosso animal morreu no início dos anos 1970, na área rural da Capital do Agreste pernambucano, quando eu ainda não havia completado uma década de existência. Não, não estou fazendo menção a Caruaru, que tem lá, reconheço, sua importância pela famosa feira, que na opinião de Onildo Almeida “De tudo que há aí no mundo nela tem para vender.” É a Capital do Forró, tem polo de confecção e um bocado de instituições de ensino superior. Naquele lugar, moram parentes e amigos de muito apreço.

Um alerta para as pessoas que continuam desavisadas, desinformadas e desatentas. As conhecidas como cabeças-duras. Sou um cabra da peste e nem peço licença para ministrar uma breve e definitiva aula da geopolítica, com ampla base teórica jurídica, filosófica e histórica, com fundamentação, planetariamente cimentada. Acompanhem o arrazoado. Se a Cidade do México é a Capital do México,  Brasília é a Capital do Brasil, São Paulo é a paulistinha e o Rio de Janeiro tem o mesmo nome do Estado, evidentemente, a dedução é simples, direta e óbvia: a Capital do Agreste, é Agrestina. Não cabe nenhum tipo de observação, controvérsia ou discussão. Não vou pedir desculpas pelo deliramento de ficar misturando os assuntos. Faz parte. E é de propósito.

Mas, quais os motivos de falar, melhor dizendo, escrever sobre um cachorro de apreço familiar e pessoal que morreu no século passado? Para compartilhar a importância que tem os bichos de estimação nas vidas humanas. Marcam as vidas das pessoas. A certeza e o sentimento de que o querido viajante não teve e dificilmente terá substituto. E por querer revelar o meu assombro como esses e outros animais são tratados no caminhar da humanidade.

Viajante era um cachorro muito bonito, malhado nas cores preta e branca. Depois da morte de viajante não recordo da criação de outro cachorro lá em casa. Ou melhor, fora dela. Cachorro não morava dentro da residência familiar. De acordo com as lembranças, deram uma “bola” para viajante. Foi assassinato.

Se aquiete, não é nenhum tipo de bola para jogar futebol ou outra modalidade esportiva. E nem bola de gude. Nem trapiá, uma fruta arredonda. Eu e meus irmãos Manuel e Erivam (em memória) além de comer a dita, a utilizava para jogar. Vida matuta tem lá suas diferenças. Como a bicha era muito pequena e dura, muitas vezes machucava o pé. Também não é bola de pano que fazíamos para jogar. Então, o que danado é?

É um tipo de veneno misturado a comida. Se ingerido, geralmente, a morte é certa. Imagine num espaço geográfico e época sem nenhuma assistência veterinária próxima. Perguntei a Neide se ela se lembrava da raça de viajante. Ela respondeu:

– Vixe Maria! Naquela época, cachorro era cachorro, gato era gato.

Simples, assim. Bem diferente de hoje.

Percebo que os cachorros passaram da condição de bichos de estimação para receberem cuidados como se fossem humanos. São tratados como parentes próximos. Conheço pessoas que os chamam como filhos, netos, sobrinhos e o escambau. Muitos moram dentro das residências e podem acessar, viver nos mesmos espaços (salas, cozinhas, quartos) e usar sofá e cama humanas.

Para as pessoas mais novas, recordo do ministro do Trabalho e da Previdência, Antônio Rogério Magri, quando no início dos anos 1990 disse que a cachorra é um ser humano como qualquer outro, para tentar justificar o uso de um carro oficial para levar a sua cadela ao veterinário. Isso mesmo, a cachorra do ministro foi no carro oficial, pago com os impostos arrecadados na esfera do Governo Federal na época do Presidente Fernando Collor, para receber os cuidados pertinentes.

Li que existem hotel e creche para cachorros. Vejam, ou melhor, leiam e analisem: a gramática. Gostava muito de levar e buscar meus filhos Bruno e João Fernando para a escola, inclusive, à época da creche. Mas, não levo cachorro para creche. Atualmente, estão disponíveis hospital público e privado. Não faltam planos de saúde.

Pula na mente a recordação  da letra de Leo Jaime (Rock da Cachorra) inconfundível na voz de Eduardo Dussek, no início da década dos anos 1980 do século passado. Entre os refrões é bom atentar para:

Troque seu cachorro por uma criança pobre
Sem parentes, sem carinho, sem rango e sem cobre
Deixe na história da sua vida uma notícia nobre

Temos cerca de 116,8 milhões de pessoas no Brasil que estão vivendo em insegurança alimentar, sendo 43,3 milhões sem acesso aos alimentos a quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada) e 19 milhões passam fome (insegurança alimentar grave). É o que revela a pesquisa nacional da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.[1]

Tem muita gente por aí que tá querendo
Levar uma vida de cão
Eu conheço um garotinho que queria ter nascido
Pastor alemão

Mas, eu e minha mania de ficar mudando de assunto. Voltando aos caninos, fico cada vez mais boquiaberto, apoquentado quando vou a centros comerciais. Recuso-me a usar expressões em outro idioma que não seja a nossa rica e bela língua portuguesa, como ensinava o mestre Ariano Suassuna. Nos ditos espaços, existem muitos cachorros “passeando” com seus donos e donas. Tem alguns até vestidos. Confesso que prefiro os bichos sem roupa. Ficam uma marmota se vestidos. Apapagaiados. Perdem a beleza natural. São mais elegantes e bonitos sem as roupas.

Nunca os percebi fazendo suas necessidades no dito local. Mas, quem faz a limpeza quando fizer o número um ou o dois? Segundo a informação de um atendente numa loja especializada em produtos animais, se fizerem o número 01 (xixi) a responsabilidade é da equipe de limpeza do próprio centro comercial. Quando for o número 02 (cocô), cabe à pessoa que leva o cachorro. Na primeira situação, suponho que deve ser repassado para os custos de manutenção e pago por todos nós. Quando vou fazer caminhada, percebo que muitas pessoas limpam o cocô do cachorro. Mas, se você (e eu) não tiver cuidado pisa nos restos deixados ao longo do percurso. E não são poucos.

Será possível, no futuro, encontrar os cachorros indo às igrejas, templos, teatro, cinema, campos de futebol?  A pergunta tem um sentido pessoal. Pretendo e planejo viver por mais três décadas, quem sabe quatro, cinco. Ou seis. Confesso que não nutro a ideia de ir, nem tão cedo, para a cidade dos pés juntos. Não vejo nenhuma graça na morte. Eles têm, os cachorros –  pelo menos aqui em Recife e Olinda – os seus próprios parques. O Parcão, uma política pública animal, tem até previsão orçamentária.

Alembro que tem projeções populacionais e nas próximas décadas teremos mais pessoas idosas do que crianças. Quero meu parque, uma vez que brevemente serei uma pessoa idosa. A rigor, é melhor que os parques sejam para todas as pessoas e não tenham separações por faixa etária. Quero conviver com crianças, adolescentes, pessoas com deficiências. Viver e conviver com as diversidades humanas.

Dia desses li na Folha de Pernambuco uma ampla matéria sobre a força do comércio que se destina a fornecer produtos para os animais, que apresentou um crescimento de 15,5% no primeiro ano da pandemia, alcançado um faturamento de R$ 40,8 bilhões. Tem de tudo para os animais. Só para dizer alguns do cardápio: patês, sorvete, chocolate, pipoca, bolo de festas, brigadeiro, café, cerveja, pão de queijo. Tem produtos 100% naturais. E o Recife conta com uma padaria para os estimados animais.

As despesas com os animais são superiores ao valor previsto para o Bolsa Família do próximo ano, estimando em R$ 34,7 bilhões, mesmo valor de 2021, e se destina a atender 14,7 milhões de famílias.[2] Um saco com ração, com 15 quilos, pode ser adquirido por até R$ 498,00, sendo influenciado pela qualidade nutricional, inclusive, para cachorros com diabetes. Sim, tem alimento dietético. Fiquei sabendo que o Brasil é o terceiro país com maior mercado para animais de estimação, atrás dos Estados Unidos e da China. Deve ser coisa do capitalismo selvagem. Segundo o DIEESE, a cesta básica humana mais cara é a de Florianópolis (R$ 645,38),  e o menor custo no Nordeste ficou com Salvador (R$ 467,30) e Aracaju (R$ 470,97).[3]

Fiquei sabendo que no mundo virtual os cachorros têm redes sociais próprias. Não quis acreditar. Fiz uma rápida pesquisa na rede mundial de computadores e encontrei a informação de que um a cada dez cachorros tem “feice livro”. Tem até cachorro influenciador. Como diria uma adolescente, personagem de uma novela: É a treva!

Para não dizer que sou contra os cuidados caninos, importa lembrar e reconhecer a necessidade e importância dos cães-guia, essenciais para aquelas pessoas cegas na promoção da acessibilidade, superando as barreiras de diversas matrizes existentes nas cidades. E lamentei bastante a morte, no ano passado, por velhice, do cachorro de João Fernando. Teve durante sua vida todos os cuidados necessários alimentares e médicos à sua condição canina.

E fico com a letra de Leo Jaime: “Seja mais humano, seja menos canino / Dê guarida pro cachorro mais também dê pro menino / Senão um dia desses você vai amanhecer latindo”. E mais: “… Deixe na história da sua vida uma notícia nobre”. Vamos ampliar a letra para todas as pessoas que vivem nas ruas, sem condições humanas. Viajante, saudades eternas! 

*Fernando Silva é mestrando em Educação, Culturas e Identidades. Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)/Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ). Escreve ocasionalmente, aos sábadosjfnando.silva@gmail.com

[1] Disponível em: https://bancodealimentos.org.br/o-brasil-que-come-alimenta-o-que-tem-fome/?gclid=CjwKCAjwp_GJBhBmEiwALWBQk6GADeWrxFzXqMmSuKqX5ZRmM6DUKYhase8WLS7rQ9pmbbichToK0RoCWw4QAvD_BwE Consulta: 13 set. 2021.

[2] Disponível em: https://economia.ig.com.br/2021-08-31/orcamento-2022-reajuste-bolsa-familia.html Consulta: 14 set. 2021.

[3] Disponível em: https://www.dieese.org.br/analisecestabasica/2021/202106cestabasica.pdf Consulta: 20 set. 2021.