Pobreza menstrual e pobreza política se igualam

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 11.10.2021

Não é só pobreza menstrual, é sobretudo pobreza de espírito, pobreza na condução das políticas públicas.

Nunca se falou tanto em menstruação como na semana que passou. Um assunto ainda hoje considerado tabu e que agora veio à tona com um conceito criado, mas nem muito discutido na sociedade, que é a pobreza menstrual.

Tudo isso porque o presidente da República, na sua grande insensibilidade ante todas as políticas públicas que possam contribuir para melhorar a vida da população pobre, vetou trechos da Lei 14.214/2021, que institui o Programa de Proteção e Promoção da Saúde Menstrual. O veto atingiu os principais pontos da proposta, como a previsão de distribuição gratuita de absorventes higiênicos a estudantes do ensino básico e mulheres em situação de vulnerabilidade e presidiárias.

Não é de se estranhar o veto, se considerarmos as manifestações públicas expressas pelo presidente contra as mulheres, durante sua trajetória política.

Ao longo da história da humanidade, muitas concepções, entendimentos e tabus foram criados sobre a menstruação, que nada mais é do que o final do ciclo reprodutivo da mulher. O sangue jorra quando o útero se prepara  durante todo o mês para abrigar um embrião e, não sendo fecundado, é descartado e chamado de menstruação, também conhecida como regra.

As mulheres passam por esse processo da adolescência até chegar à menopausa. A menstruação tem a duração de três a sete dias, e esse processo pode trazer para as mulheres alguns transtornos orgânicos, causando incômodos como dores, hemorragias, etc.

Os homens geralmente não tomam conhecimento sobre essa questão, que está diretamente relacionada à saúde sexual e reprodutiva de mais da metade da população brasileira composta de mulheres e à sexualidade humana.

“A saúde sexual e reprodutiva é um direito humano, assim reconhecido pelo Brasil. É responsabilidade do Governo Federal tanto a atuação direta quanto prestar auxílio para estados e municípios a garantir este direito para todas as brasileiras”. (SUS)

Durante muito tempo, em algumas culturas e épocas, mulheres menstruadas eram consideradas impuras, bruxas e até queimadas em fogueiras, toda essa situação associada à sexualidade como uma coisa suja. Mas, segundo historiadores, houve tempo na Grécia Antiga e em algumas culturas indígenas que a menstruação era cultuada como o símbolo da fertilidade e até era festejada em tempos de colheitas dos produtos da terra.

Os médicos e cientistas se perguntavam sobre o motivo e a função da menstruação desde os anos 400 a 300 a.C.

“Com a Renascença foi possível a retomada das iniciativas da ciência, e foi possível, pela primeira vez, conhecer a anatomia e fisiologia da mulher por meio de estudos que permitiram afastar conceitos absurdos e fantasiosos sobre o útero feminino e sobre a circulação do sangue.

Somente no final do século XIX e principalmente no século XX, a partir da descoberta dos hormônios, se tornou possível compreender de fato o que era a menstruação, um fenômeno inteiramente governado pela atividade endócrina do ovário, cuja repetição mensal resulta exclusivamente de uma falha reprodutiva”. (Fabiana Carvalho e Atos Prinz Falkenbach, in O histórico da menstruação e sua relação com a saúde da mulher)

No Brasil, essa questão de certo modo ainda é nebulosa para a sociedade.

Apesar de termos avançado com relação às políticas de saúde da mulher, a partir do SUS e do movimento organizado de mulheres, ainda vivemos situações em que adolescentes não são orientadas quanto à sua saúde reprodutiva. E muitas mulheres ainda se sentem envergonhadas ao chegar à farmácia e supermercados para adquirir o absorvente a ser usado quando estão menstruadas.

No Egito Antigo elas usavam papiros como absorventes. Na Roma Antiga, chumaços de algodão serviam como tampões internos. As toalhinhas higiênicas foram a opção favorita desde a Idade Média até 1918. Demorou centenas de anos para descobrirem uma forma eficiente de conviver com o sangramento, quando enfermeiras francesas da Primeira Guerra Mundial descobriram que bandagens de algodão eram ótimas para estancá-lo. Em 1930 foram criados os absorventes internos descartáveis produzidos industrialmente.

No Brasil, conhecemos vários tipos de artifícios que as mulheres pobres se utilizam para deter o sangue que necessariamente deve ser expulso do corpo pela vagina.

O problema para uma parte significativa de mulheres que estão vivendo em condição de pobreza, e em condições outras de vulnerabilidade social, é que a renda familiar não permite comprar absorventes todos os meses.

No Brasil, a pobreza menstrual apresenta uma grande conta para a população e para o país, com a contribuição para o baixo rendimento escolar, com baixo rendimento das mulheres em seus afazeres, sem falar da autoestima e da questão dos direitos garantidos.

Segundo a Folha de S. Paulo (8/10/2021), pesquisa divulgada em maio deste ano revelou que 28% de mulheres faltaram a aulas por não poderem comprar um absorvente. Destas, 48% esconderam esse motivo; e 45% foram prejudicadas em seu desempenho escolar. O Unicef informou que 713 mil meninas brasileiras não têm acesso a banheiro ou chuveiro em suas casas.

No Brasil, 29% das mulheres já ficaram sem dinheiro para comprar itens de higiene menstrual, uma em cada quatro adolescentes não possui um absorvente durante seu período menstrual. É o que mostram pesquisas coordenadas pela antropóloga Mirian Goldenberg e o relatório Livre para Menstruar, elaborado pelo movimento Girl Up, que busca o acesso gratuito a itens de higiene e condições básicas de saneamento para as mulheres.

Bom seria mesmo que não tivéssemos 14 milhões de desempregados e os que têm emprego recebessem um salário mínimo que atendesse às necessidades para a dignidade humana.

Para necessidades básicas é claro que o Estado Brasileiro deverá prover recursos através das políticas básicas, já que não temos no país um programa de renda mínima na forma da lei para os que vivem em condição de pobreza.

O apoio solicitado para as mulheres pode ser feito através do SUS, entre as ações do Programa Saúde Sexual e Saúde Reprodutiva.

No entanto,  não se trata de falta de recursos. O programa beneficiaria cerca de 6 milhões de mulheres e a estimativa de impacto fiscal é de R$ 84,5 milhões por ano.

Objetivo do governo é desconstruir as políticas sociais já implantadas durante anos, a muito custo, e impedir que a população pobre exerça seus direitos de cidadania.

Com essa discussão através da mídia podemos observar que a pobreza menstrual não consiste somente na ausência de poder aquisitivo para a aquisição de itens de higiene íntima, mas representa também a falta de informação e a forma como o tema ainda é visto pela sociedade.

Sobretudo, chama à atenção da sociedade para as implicações socioeconômicas causadas pela situação de subordinação da mulher em pleno século XXI.

Não é só pobreza menstrual, é sobretudo pobreza de espírito, pobreza na condução das políticas públicas.

É a pobreza estrutural que ainda afetará o país por muitos anos.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Este texto não reflete necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.