Abraham passou, Freire passarinho
Marcelo Bizerri*
Em 26.06.2020
Abraham Weintraub foi provavelmente o pior ministro da Educação desse país desde que o cargo foi criado.
Além de apresentar uma qualificação medíocre para o posto que ocupou, seus gestos cotidianos exibiram ao país, e lamentavelmente ao mundo em algumas ocasiões, um ser grosseiro e muitíssimo imaturo. Se a gota d’água para sua queda foi a grotesca fala na fatídica reunião ministerial de abril, e sua insistência no erro, não se pode deixar de lado o conjunto igualmente grotesco de sua “obra” de militante olavista à frente do Ministério da Educação (MEC).
Não satisfeito em ofender países inteiros, comunidades, instituições da república, adversários políticos, jornalistas, indígenas, estudantes, professores, escolas e universidades, o ex-ministro ofendeu a língua portuguesa diversas vezes, seja expressando oralmente suas “ideias”, seja fazendo o que mais gosta, brincando nas redes sociais.
Fazendo jus ao comportamento típico dos valentões de ocasião que ocupam o governo, seus atos finais foram o covarde silêncio diante da polícia federal e sua ‘ida às pressas’ para Miami antes mesmo que o suposto novo cargo estivesse concretizado.
Ainda que tenha mínimas expectativas para o que virá, não posso deixar de achar que sua saída do MEC é uma boa notícia em meio a tantas terríveis. Finalmente podemos nos permitir um minuto de regozijo pela educação. Agora é pra valer: ‘Abe is out!’
Um dos disparates prediletos do ex-ministro da educação foi atacar Paulo Freire. Apesar do ex-ministro argumentar infantilmente que achava o educador “feio” (?), as razões parecem ser outras, ainda que difusas. A defesa convicta de uma educação alienante? Mera ignorância da obra do educador? Rancor juvenil contra os “educadores esquerdistas”? Provavelmente uma mistura de tudo isso e outras coisas incompreensíveis dentre as tantas que temos assistido diariamente.
Com o assunto da demissão em mente, imaginei um encontro improvável, no entanto, curioso.
“Abraham estava em seu gabinete esvaziando as gavetas, com ar confuso, mexendo em coisas, visivelmente chateado, sentindo-se traído após devotar uma fidelidade canina ao seu presidente. Apesar desse mal-estar, no fundo agradecia o presente que ganhou com a possibilidade de um novo emprego no exterior, já que voltar ao cargo de professor em uma universidade federal era uma visão que lhe dava arrepios. Perdido nesse devaneio, é interrompido por uma secretária.
– Ministro, tem um senhor aqui querendo falar com você. Posso mandar entrar?
– Depende, é alguém que eu conheça?
– Parece que sim, o senhor fala o tempo todo nele. Disse que é um tal de Professor Paulo Freire.
– Tá maluca? O homem está morto, deve ser alguma zoação, manda embora, pô!
– Não sei não, é igualzinho a foto daqueles livros que o senhor mandou jogar fora, mesmo sem abri-los. É um senhor magro, de barba branca, careca mas com um cabelão. Ih, olha aí, acabou entrando.
– Vade retro alma penada! Não vai me atingir, o sangue de Cristo tem poder!
– Abraham, tenha calma, sou contra qualquer tipo de violência, vim apenas tentar dialogar com você. Podes ver que estou desarmado, ou melhor, armado apenas de ideias.
– Isso é por causa do que falei do mural lá embaixo do prédio, não é? Agora é tarde, vai acabar ficando como está, duvido encontrarem alguém com peito pra enfrentar vocês como eu, esquerdistas de uma figa.
– Sabe, Abraham, eu tenho pensado sobre qual das coisas que eu disse que tanto ofendeste a ti, mas confesso minha dificuldade em identificar tais palavras. Grande parte do que disse em meus escritos foi sobre o compromisso do educador e a necessária amorosidade aos educandos. Afinal, como ser educador sem aprender, com maior ou menor esforço, a conviver com os diferentes? Por isso vim tentar um esforço derradeiro em compreendê-lo, percebes?
– Tá de brincadeira…
– Meu jovem, posso chama-lo assim? Deixo claro que não o chamo de jovem no sentido de diminuí-lo, muito menos de não reconhecer o cargo que ocupa, quero dizer, que ocupou momentaneamente, mas com o desejo de ter uma conversa franca e verdadeira.
– Não se aproxime, professor! Se der mais um passo chamarei algum filho do presidente, o que estiver mais perto!
– Veja bem, jovem Abraham, não há nenhum problema se você ou outros companheiros seus não gostarem de mim ou de algo que porventura eu tenha dito ou escrito, o que não posso é me calar diante do desrespeito dos poderes públicos pela educação. Você bem sabe, ou deveria saber, que um dos piores males que o poder público vem fazendo a nós, no Brasil, historicamente, desde que a sociedade brasileira foi criada, é o de fazer muitos de nós correr o risco de, a custo de tanto descaso pela educação pública, existencialmente cansados, cair no indiferentismo fatalisticamente cínico que leva ao cruzamento dos braços. ‘Não há o que fazer’ é o discurso acomodado que não podemos aceitar.
– Já saquei, você está sempre querendo confundir falando desse jeito complicado, fala logo o que quer e “cai fora”.
– Não quero confundi-lo, Abraham, ao contrário, falo usando corretamente a língua portuguesa, contudo deixe-me ser mais claro. A minha resposta à ofensa à educação é a luta política, consciente, crítica e organizada contra os ofensores. E uma das formas de luta contra o desrespeito dos poderes públicos pela educação, de um lado, é a nossa recusa a transformar nossa atividade docente em puro bico, e de outro, a nossa rejeição a entendê-la e exercê-la como prática afetiva de ‘tias e de tios’.
– Ah, essa lengalenga toda não passa de doutrinação comunista! Tá vendo porque precisamos abolir você das escolas?
– Veja que você está pouco informado diante das minhas opções. Eu não sou anticomunista, mas também não sou comunista. Eu sou um socialista, acredito na participação popular, na transformação do mundo, sobretudo para aqueles e aquelas que se encontram desprovidos e roubados no seu direito de ser. Por que não aproveitar a experiência que têm os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem-estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde das gentes? Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar os conteúdos, transferi-los aos alunos. Aprendidos, estes operam por si mesmos. É pergunta de subversivo, dirão certos defensores da democracia, e … mas por que você está tapando os ouvidos e cantarolando?
– Já chega! Secretária, pegue meu celular, preciso enviar meu último tuíte. Nesse eu vou lacrar!”
Na minha imaginação vi Paulo Freire saindo dali com uma sensação dúbia, por um lado aliviado por ter feito o esforço final de tentar dialogar com o ex-ministro, por outro frustrado com o descaso com a educação e com a nítida convicção de que Abraham não tinha mesmo a mínima condição de entender qualquer pedaço daquela conversa.
Não dou uma semana para que nenhum outro tuíte dele seja levado em consideração pela imprensa. Como ele vai lidar com isso, tampouco me importa.
Paulo Freire permanecerá inspirando educadores comprometidos com o combate às desigualdades, sua obra já resistiu a ataques maiores de gente mais qualificada. Em pouco tempo, Weintraub e esses sujeitos que atravancam seu caminho passarão, já Freire, ah, Freire “passarinho”.
*Marcelo Bizerril é diretor do campus de Planaltina da UnB.
Texto extraído da Revista Brasil de Fato.
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