Desde terra brasilis: desiguais.
Edinaldo César Santos Junior*
Em 04.11.2021
Eu, homem de cor, só quero uma coisa: Que jamais o instrumento domine o homem. Que cesse para sempre a servidão do homem pelo homem. Ou seja, de mim por um outro. Que me seja permitido descobrir e querer bem ao homem, onde quer que ele se encontre.
Frantz Fanon
A promessa da igualdade entre as pessoas, prevista constitucionalmente, não pode descurar das diferenças que a (sobre)vivência em uma sociedade racializada impõe para as pessoas negras. É por isso que a hermenêutica possível para uma isonomia efetiva é aquela que emancipa esse grupo vulnerabilizado, agindo assertivamente em prol de uma verdadeira equidade.
A princípio, é preciso compreender que a desigualdade racial é fruto de um projeto estatal em relação às pessoas negras no Brasil. Diversos documentos e estudos evidenciam que a sociedade brasileira imperial reestruturou, recombinou e fundou instituições, preparando todo o Estado para perpetuar desigualdades tendo como cerne, e um dos pilares, a racialização.
Portanto, brancos e negros nesse país não são iguais em suas circunstâncias. Nunca fomos. Desde terra brasilis.
A denominada Lei de Terras de 1850, Lei nº 601, que surge exatamente quando o tráfico negreiro passou a ser proibido no Brasil, estabelecia que não seria mais cabível a apropriação de nenhuma terra através do trabalho, tão somente pela compra. Esta circunstância obstava praticamente a possibilidade de que uma pessoa negra ocupasse a condição de proprietário de terras a partir de então.
No Código Penal de 1830, o negro era considerado coisa, porque objeto de furto, ao tempo que para puni-lo, inclusive com a morte, se tornava sujeito de direito. O negro, a negra, à época, eram considerados sujeitos apenas para o direito penal.
Houve também, durante o século XIX, o estabelecimento de uma política educacional excludente para a população negra. O Decreto nº 1331-A, de 17 de fevereiro de 1854, previa que nas escolas públicas do país não seriam admitidos escravos. O Decreto nº 7031-A, de 6 de setembro de 1878, estabelecia que somente podiam se matricular, no período noturno, pessoas do sexo masculino, maiores de 14 anos, livres ou libertos, saudáveis e vacinados. Irrefutável a exclusão das mulheres e dos escravos.
No final do século XIX, a partir de 1888, a pessoa negra foi deslocada da condição de coisa, semovente, tal qual gado, e logo depois jogada à própria sorte em uma sociedade que precisava justificar a sua inferioridade, garantindo hierarquia social e racial. Nessa toada de racialização da sociedade brasileira, entre o final do século XIX e o início do século XX, são difundidas teorias raciais eugenistas, de cunho biológico, adotadas inclusive constitucionalmente (na Constituição de 1934 há previsão de educação eugenista, que preconizava a pureza racial). Se antes títulos de nobreza eram herdados, a herança era a superioridade genética que garantia o bom cidadão.
O embranquecimento sempre foi desejável pelo Estado. Ao encontro desse desejo, houve o incentivo à imigração europeia. A Lei de Terras também previa um subsídio para que colonos do exterior fossem contratados no país, em detrimento do trabalho das pessoas negras. O Decreto-lei n. 7.967, de 1945 (com vigência até os anos 1980), assinalava um tipo de composição étnica desejável para se entrar no Brasil: a europeia. Havia um propósito de apagar a presença negra no país. Imaginava-se que em cem anos haveria um Brasil branco: buscava-se uma verdadeira Redenção de Cam.
Para além da deliberada vontade eugenista nas áreas da educação e da imigração, no pós-abolição legal se inicia um processo de criminalização de condutas nas quais o sujeito ativo do crime seria, em regra, o negro. Capoeiragem, mendicância e vadiagem são exemplos.
Desumanizados. Sem terra. Deseducados. Inferiorizados. Criminalizados. Excluídos.
O mito da democracia racial fez parte dessa arquitetura muito bem trabalhada de exclusão da pessoa negra no Brasil. A cordialidade, afirmada pelo mito, serviu para a manutenção de uma perversa forma de racismo, cujo resultado é a carência de políticas de redistribuição e de reconhecimento de identidade para os pretos e pardos.
Não somos “duas metades confraternizantes que se vêm mutuamente enriquecendo de valores e de experiências diversas”, como queria fazer crer Gilberto Freyre.
Mas quando o mito da democracia racial já não mais se sustenta, a retórica da neutralidade racial (colorblindness) ganha força. “Somos todos humanos”, diriam alguns, “não vejo cor, vejo pessoas”, diriam outros, mas as estatísticas de hoje, por demais conhecidas, descortinam a desigualdade persistente. A pobreza tem cor. O encarceramento tem cor. O analfabetismo tem cor. O Poder tem cor. A carne mais barata do mercado ainda é a carne negra.
É evidente que as desigualdades de ontem refletem vigorosamente na manutenção da população negra brasileira na periferia social. As oportunidades não são negras. Como a construção da desigualdade racial foi outrora um projeto de Estado, a sua desconstrução implicará uma conversão de rumo na sua política, devendo a questão racial ser posicionada no centro da discussão e não mais à margem.
O racismo escolheu o lugar das pessoas negras, que não era o da humanidade. Um viver no não-lugar. Nunca houve nem haverá docilidade na opressão sofrida pelo povo negro e indubitavelmente as mudanças estruturais necessárias não serão obtidas aceitando a generosidade freiriana do opressor: falsa, oportunista e de permanente injustiça. Para Paulo Freire, somente o poder que nasça da debilidade dos oprimidos será suficientemente forte para libertar tanto o oprimido quanto o opressor. Freire, em alusão ao martinicano Frantz Fanon, salienta que essa libertação da opressão, deverá “partir dos ‘condenados da terra’, dos oprimidos, dos esfarrapados do mundo e dos que com eles realmente se solidarizem”. Alianças serão sempre bem-vindas, entretanto é negra a dor da diferença entre os iguais.
As questões raciais são cabalmente perceptíveis, mas facilmente ignoráveis por quem não vive sob a égide desse marcador da diferença que é o racismo. Não há como alcançar a igualdade sem racializar a brancura, sem pensar a branquitude, que urge ser problematizada, porque atua como signo de superioridade e de opressão.
Definitivamente, toda e qualquer ideia de neutralidade racial deve ser rechaçada. A realidade é que não somos iguais se essa igualdade for anunciada somente para manter esse estado de coisas racista do qual somente parcela privilegiada da sociedade se vê como beneficiária. Assim, o país que ansiamos é aquele que consiga enxergar suas cores e assuma uma inarredável posição antirracista, pavimentando os caminhos de hoje para que tenhamos uma sociedade do amanhã muito melhor do que esse estado de coisas racialmente desiguais do agora.
*Edinaldo César Santos Junior é Juiz de Direito em Sergipe, mestre em Direitos Humanos pela USP e coidealizador do Encontro Nacional de Juízas e Juízes Negros (ENAJUN).
Artigo publicado originalmente no portal Justificando (coluna Vozes Negras).
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: A Redenção de Cam, pintura a óleo sobre tela realizada pelo artista espanhol Modesto Brocos