Nos tempos do orelhão

Por

Miguel Paiva*

Em 06.11.2021

Lembro até hoje da barraquinha que foi armada na esquina da minha rua na Fonte da Saudade, no Rio, na campanha do Jânio Quadros para a presidência da república. Devia ser 1960, mas não sei porque aquela barraquinha estava armada ali, no meio de um bairro de classe média. Pensando bem, faz todo o sentido. A barraquinha vendia sobretudo vassourinhas de todos os tipos. A vassoura, pra quem não sabe, era o símbolo da campanha do Jânio. Essa fixação com limpeza passou depois pelos militares, pelo Collor e hoje aterrissa, cheia de sujeira no Bolsonaro. Os broches de metal dourado na forma de uma vassoura de palha eram famosos, objetos de desejo.

Assim, sem internet, com pouca tv e vendendo badulaques ele foi eleito. Jânio representava a UDN, o que havia de mais golpista na chamada classe dominante brasileira. Tentou, meses após a posse, dar um autogolpe, renunciando para depois voltar nos braços do povo, mas não deu certo. Nem pra ele, nem para o resto do país que paga até hoje pelo golpismo e pelo autoritarismo que herdamos.

Não dá para dizer que as fake news foram inventadas hoje com o avanço da internet. Na realidade elas sempre existiram e na verdade o que acontecia é que nem precisavam ser inventadas. Quem se opusesse ao que a chamada elite queria era digamos assim, cancelado no exílio ou numa cadeia. O regime democrático custou muito a chegar ao Brasil e mesmo com os telefones antigos e os jornais impressos o que se via, com a honrosa exceção de alguns jornais e jornalistas, era uma manifestação impressa do apoio ao governo, com alternâncias. Jornais como Última Hora ou Tribuna da Imprensa, aqui no Rio, cumpriram um papel de tentar vigiar o que ia contra o pensamento deles.

Mas era assim que a jovem e inexperiente democracia brasileira vivia. Cartas eram mandadas, editoriais eram escritos, ligações telefônicas eram feitas, quando se conseguia linha e sobretudo telegramas e telexes eram enviados com urgência. Lembro também a primeira vez em que vi um fax funcionando foi na sucursal do Globo em São Paulo. Era um avanço inacreditável mesmo que para acontecer precisássemos da velha linha telefônica. Quando trabalhei com o grande Luís Fernando Veríssimo fazendo as tiras do detetive Ed Mort, ele em Porto Alegre e eu em São Paulo, usávamos o fax. Era tão precário que depois de mandar a mensagem a Lúcia, mulher dele, me ligava e checava se eu havia recebido tudo claramente. Muitas vezes ele me ditava o texto e eu anotava. Fax manual. Mas era assim a vida e não morríamos de tédio.

O telefone sempre fez parte das nossas comunicações, dentro da cidade e até para fora do país. Quando Paris estava cheia de exilados, os brasileiros mais espertos descobriram um jeito de ligar pra cá sem pagar nas cabines públicas. Amarravam um fio a uma ficha que ali ficava inserida possibilitando a coligação automática com o Brasil. Certas cabines onde isso era possível tinham filas enormes na frente. A polícia acabou descobrindo e a farra encerrada.

Outra história que envolve o telefone traz de novo o agora já eleito presidente da república Jânio Quadros. Com suas atitudes arrogantes, meio loucas e autoritárias ele convocou uma vez seu chefe de gabinete, Augusto Marzagão que depois virou diretor do famoso Festival da Canção do Rio, para formar sua equipe. Ao Marzagão ele só pediu os números de telefone das pessoas indicadas. Marzagão ia dizendo e Jânio aceitando ou recusando como fazem hoje no Tinder, passando o dedo na tela. Os que davam match eram os números da zona sul do Rio que dava para identificar pelo prefixo. Moradores do Leblon, Ipanema, Copacabana, Gávea e Jardim Botânico estavam aptos a fazer parte do governo. Quem morava na Tijuca, no Flamengo ou na zona norte estava fora do governo. De novo o cancelamento para provar que não foi inventado agora.

Preconceitos sempre existiram. Luta de classe sempre existiu. Autoritarismo sempre esteve presente e o golpismo sempre foi um fantasma ativo. Com internet ou não, os tempos mudam, mas os crimes continuam e não prescrevem.

*Miguel Paiva – Cartunista, diretor de arte e ilustrador além de jornalista, comentarista e autor de teatro, cinema e televisão.

Artigo publicado originalmente no portal Jornalistas pela Democracia.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do blog Falou e Disse.