Chato mundo profissional

Por

Eugenio Jerônimo*

Em 27.06.2020

Pedi oito itens num delivery de alimentos regionais. Quatro deles não vieram. Entre os que foram esquecidos, dois eram da categoria doce: um, doce mesmo, goiabada cascão; outro, bolo de rolo. Automimo gastronômico que me dei para adoçar estes insípidos dias de isolamento por causa da pandemia do coronavírus.

Ir ao supermercado ou à padaria só para comprar esses dois produtos estava descartado. Exposição desnecessária ao vírus. Imprudência que não cometeria, embora os dois itens fossem, nas circunstâncias atuais, gêneros de primeira necessidade. Como as entregas são semanais, minha fome de doce teria de esperar longos sete dias. Liguei para uma amiga para lamentar o fato.

Sensibilizada, ela me sugeriu uma solução caseira.

— Tem umas bolinhas de açúcar que minha mãe fazia quando a gente era pequeno.
Agradeci:

— Brigado, mas meu notório saber em cozinha não vai além de um ovo frito.
Porém ela insistiu:

— Mas é bem fácil. Só tem água e açúcar. Não tem nada.

Ao ouvir o “bem fácil” foi que tive certeza mesmo de que não conseguiria fazer a receita. Como é complexo fazer coisas simples.

Pensei na poesia de Mário Quintana. Parece tão simples que muitas pessoas empestam as redes sociais com frases ruins e atribuem a autoria ao poeta gaúcho. A poesia de Quintana é fácil de ler, mas é difícil de escrever. No caso há uma grande diferença entre o fácil e o banal.

E o que dizer daquele célebre drible de Pelé no goleiro do Uruguai durante a Copa de 70? Muito óbvio. A bola é lançada, tanto o goleiro quanto o craque correm para alcançá-la. À direita do goleiro, Pelé finge dominá-la, mas a deixa passar, contorna-o pela esquerda e a apanha na frente. A clássica finta se resume a isso. A receita é simples, não tem nada, agora vá fazer…

— Obrigado, mas não vou profanar a receita de sua mãe.

Minha amiga entendeu minhas limitações na arte de cozinhar e reencaminhou a conversa. Passou a reclamar de que hoje todas as atividades se converteram em negócio, numa relação de compra e venda.

A cena de festinha de aniversário de criança. O bolo ainda cheirando no forno, enquanto um adulto recheia os salgados, outro cuida dos doces e as crianças enchem os balões com a boca. Esqueça. Tem um disque-festa na esquina. Muita gente superindica. Bom, barato e prático.

Dançar, para quem não sonhava em seguir carreira, era coisa intuitiva. Exercitava-se com os irmãos, no ciclo de amizade, tirava-se a vassoura para bailar em demoradas voltas pela sala. Agora não. É preciso fazer dança numa academia, com um professor, e, claro, pagamento.

A rua e os campos de barro, eram os palcos naturais onde os meninos davam os primeiros passos atrás da bola. Se tivessem talento e pudessem encarar a loteria de tentar carreira de atleta profissional de futebol, iam para algum clube. Isso ficou no passado. Atualmente os pais matriculam os filhos nas escolinhas quando eles ainda estão nas fraldas.

Quantos jovens aspirantes a escritores se reuniam em livrarias, cafés, bares, praças. Ali cada um se tornava crítico da produção dos colegas. Louvava, apontava falhas, sugeria mudanças, indicava leituras. Todos, a um tempo, discípulos e mestres. Nada disso mais se observa. Entre quatro paredes, uma oficina literária ensina contemporaneamente as técnicas de escrever aos poetas, dramaturgos e ficcionistas do futuro.

Minha amiga sintetiza o pensamento numa frase:

— Vivemos um chato mundo profissional.

Concordei. Ela tinha razão. Mas havia também um lado bom. Demonstrei:

— Veja quanta gente está tirando o sustento com essas transformações. Confeiteiros, pasteleiros, técnicos, dançarinos, escritores…

Minha interlocutora ficou em silêncio, e eu achei que era um silêncio concordante. Então, arrematei:

— É porque você não entende muito como é que roda a economia.

E ela:

— Não estou falando de economia, estou falando de afeto.

Lembrei-me de umas bananas pós-maduras. Arrisquei um doce. Mal esfriou, comecei a comer. Na mastigação, meu paladar podia distinguir o que era banana, o que era açúcar, o que era água. Mas consegui iludir um pouco o sabor desagradável desses tempos e venci mais um dia de isolamento.

*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria).

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