Reflexão sobre as muitas violências
Mirtes Cordeiro*
Em 20.12.2021
Os métodos policiais e a lentidão da justiça no trato das questões judiciais muito contribuem para a manutenção da violência.
São muitas as violências que, nestes tempos modernos, são acompanhadas em tempo real pelos meios de comunicação que a mais atualizada tecnologia nos proporciona. Não que não ocorressem – as violências – em tempos anteriores ao nosso, mas nos assustam as formas sofisticadas pelas quais acontecem e os intervalos de tempo.
A violência no Brasil se instalou com a colonização e nos acompanha até os dias atuais. Primeiro, aconteceu com a forma como colonizadores aqui chegaram e se impuseram, tomando as terras dos indígenas. Em segundo lugar, pela submissão dos índios e posteriormente dos negros trazidos da África como escravos, por volta de 1530, com a exploração do pau brasil, uma árvore que produzia madeira de lei e que representou o primeiro grande ciclo econômico do Brasil.
A madeira era exportada para produzir corantes para a construção naval e mobiliário de luxo.
“A violência era algo rotineiro na vida dos escravos, e o tratamento violento dedicado a eles tinha o intuito de incutir-lhes temor de seus senhores. Esse medo visava mantê-los conformados com a sua escravização e impedir fugas e revoltas. Uma punição muito comum aplicada sobre eles era o “quebra-negro”, que os ensinava a sempre olharem para baixo na presença de seus senhores”. (Daniel Neves-Escravidão no Brasil)
O sistema escravocrata gerou a exclusão social dos negros e indígenas dos bens de consumo em uma sociedade que constituída no mercantilismo foi se transformando num sistema capitalista atrasado, aperfeiçoando a concentração das terras e promovendo a exclusão social até as últimas consequências. Atualmente, 23 milhões de pessoas vivem em condição de pobreza extrema e institucionalizada, aquela em que as pessoas cumprirão um ciclo de vida em que dificilmente terão condições e força para prover a sua sobrevivência com dignidade, sendo reconhecida como tal pela sociedade como necessária para o seu funcionamento.
É o que restou do sistema escravocrata, um país com aparência de modernidade que se consolidou com a prática da violência institucionalizada, praticada de todas as formas.
A falta de emprego e renda para sobrevivência; a negação da terra para plantio e sobrevivência das famílias agricultoras; a falta de acesso às unidades de saúde; a falta de escolas em tempo integral proporcionando boa aprendizagem às crianças e jovens; a falta de moradia digna e a concentração da maioria da população em barracos nas favelas e periferias urbanas, são formas de violência contra a população.
Os métodos policiais e a lentidão da justiça no trato das questões judiciais muito contribuem para a manutenção da violência.
O orçamento secreto ora praticado pelo Congresso e de certa forma apoiado pela justiça, é uma grande forma de violência contra o dinheiro dos impostos pagos pela população, que deve por ela ser monitorado permanentemente.
Nos últimos anos observamos que ressuscita uma corrente de pensamento obscurantista no país que trabalha pelo não cumprimento da constituição, pelo impedimento da demarcação das terras indígenas, pela organicidade das milícias, pela ampliação da grilagem de terras e do garimpo irregular na Amazônia, pela destruição das políticas públicas, sobretudo as políticas afirmativas que traçam o caminho da inclusão dos que mais necessitam de apoio e que contribui para que a situação de desigualdade também vá se aprofundando. Com isso acontecendo, também cresce o crime organizado.
Também manifestam o desejo que se retire do Plano Nacional de Educação (PNE) as orientações para promoção da igualdade de gêneros nas escolas.
A sociedade que se diz moderna é altamente consumista e promove cada vez mais o distanciamento entre os que sabem ler e escrever, entre os que tiveram acesso à escola qualificada para boa aprendizagem e as que tiveram acesso à escola com má aprendizagem e sobretudo os que não dominam não só a escrita e leitura da língua portuguesa e de outras línguas, mas sobretudo a leitura e escrita dos algoritmos.
Sem escola com qualidade, sem renda, sem emprego é difícil ter acesso à tecnologia.
Convivemos com uma cultura impregnada de violência em muitos aspectos da vida dos brasileiros.
Famílias que reclamam por que já não podem bater nos seus filhos após a aprovação da lei conhecida como Lei da Palmada e os dados revelam que 81% dos casos de violência contra crianças e adolescentes ocorrem dentro de casa. (Agenda brasil)
A Lei tenta mostrar que é possível educar sem violência, sem humilhar a criança, utilizando o diálogo, o conhecimento, a empatia e sobretudo o afeto.
A violência contra as crianças e os adolescentes em 2021, indica a ocorrência de 50.098 casos denunciados, sendo que “a mãe aparece como a principal violadora, com 15.285 denúncias; seguido pelo pai, com 5.861; padrasto/madrasta, com 2.664; e outros familiares, com 1.636 registros. Os relatos feitos para a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH) são, em grande parte, de denúncias anônimas, cerca de 25 mil do total”.
A violência infantil deixa marcas para a vida inteira, seja a violência física ou psicológica e atinge diretamente o desenvolvimento da criança, provocando impactos profundos. Estudiosos que tratam dessa questão relatam seus efeitos como sério problema social para o país.
A violência contra a criança também aparece na forma da negligência e abandono, na prática do trabalho infantil, nos atos relacionados ao abuso sexual e na pedofilia, na tortura e no tráfico.
Algo semelhante acontece com os idosos. Negligência e exploração. Mais de 12 milhões de idosos são hoje considerados chefes de família – sustentam filhos que não têm renda e netos – a grande maioria com recursos de aposentadoria e benefícios da previdência.
A violência também prolifera com o avanço do machismo na sociedade, cuja maioria é constituída por mulheres (52,2-IBGE), e ainda é considerada minoria.
Os agressores apresentam em grande medida problemas que têm origem nas relações familiares e nos processos educacionais, como carência afetiva, dificuldade na comunicação, dificuldade na solução de problemas, variações cognitivas, baixo nível de altoestima, baixa tolerância ao lidar com frustrações e os transtornos de personalidade, segundo estudo publicado por Camila Rodriguez Fernandez, especialista em sexologia e psicologia.
Essas reflexões vêm à propósito dos dados sobre a violência contra as mulheres em Pernambuco, revelados pela imprensa na semana que passou e praticados por autoridades que têm por dever proteger os direitos humanos.
Segundo informação do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE), foram concedidas 12.876 medidas de proteção para mulheres vítimas de violência durante esse ano, enquanto a Polícia Civil informou que entre janeiro e outubro foram registrados 34.240 casos de crimes contra as mulheres.
O Núcleo de Mulheres de Pernambuco, composto por 20 entidades de defesa dos direitos da mulher, manifestou o seu repúdio e solicitou imediata apuração dos casos.
Por meio de nota, o Grupo Mulheres do Brasil, através do Núcleo de Mulheres de Pernambuco, afirmou se manifestar em nome das mais de 100 mil mulheres que compõem a entidade nacionalmente “em prol do seu compromisso institucional, de sua atuação na defesa e proteção dos direitos das mulheres e da luta constante em repudiar a violência contra a mulher”. (G1)
É preciso mudar esse rumo. Sobretudo, é necessário que tenhamos atitudes concretas contra os vários tipos de violência instaladas no país.
*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: Amazonas Atual.