Elza Soares e o ativismo das mulheres
Helena Theodoro*
Em 23.01.2022
Mais uma vida preta se vai! Perdemos Elza Soares, cantora negra, guerreira! Seu estilo inigualável de cantar e falar do povo preto a levou ao reconhecimento artístico e social no país e no exterior. Foi considerada A Voz do Milênio, mas seu sucesso nunca a afastou de nossa luta por igualdade e direito ao bem viver. Nos deixou no mesmo dia em que seu grande amor Mané Garrincha faleceu há 40 anos: 20 de janeiro.
Sua participação em nossa luta contra o racismo e a desigualdade social foi imensa, numa carreira de 60 anos de atuação e sua imagem continuará sendo intensa, por toda a representação política que tem. Foi a primeira mulher a vir puxando um samba-enredo no desfile do Sambódromo, realizou espetáculos marcantes para as mulheres negras, além de usar seus dotes vocais de forma primorosa. Mesmo com problemas de saúde não deixou de se apresentar nos palcos, empolgando a todos com sua arte e seu ativismo.
Nunca irei esquecer meu primeiro contato próximo com Elza em seu apartamento na Zona Sul. Geraldinho Carneiro me convidou para realizarmos uma peça musical sobre a vida de Elza e lá fomos nós num final de tarde fazer uma gravação em sua sala. Que história de vida incrível.! Como passou dificuldades, sendo usada e abusada. Nunca irei esquecer de sua expressão quando falou de sua apresentação no programa de calouros do Ari Barroso, com um vestido emprestado, e o que respondeu quando ele lhe perguntou de que planeta vinha. Sua resposta: “Do planeta FOME!!!”
Lamento que o espetáculo não tenha se concretizado, mas nunca mais esqueci a história de vida desta artista maravilhosa e de alguns acontecimentos muito engraçados que meu amigo violonista João de Aquino contou das viagens que fizeram pelo mundo.
ELZA sempre lutou por mulheres negras e LGBTI, nos fazendo pensar nelas. Sua vida e seu ativismo nos levam até o resultado da pesquisa do Fundo Social Elas + sobre Ativismo e Pandemia no Brasil. Tal publicação nos permitiu conhecer como grupos e organizações de mulheres e de LBTI (lésbicas, bissexuais, trans e intersexo) foram impactadas e como vêm reagindo à pandemia da Covid 19.
Elza Soares sempre se preocupou com as questões sociais e com as mães da comunidade preta, já que era uma delas, sofrendo com a perda de filhos.
A pesquisa do Fundo, foi feita logo no início da pandemia, por conta de um edital, que buscou flexibilizar recursos para apoiar grupos formais e informais em 2020 e 2021 para o atendimento às demandas de emergência humanitária e manter suas organizações funcionando na luta por direitos. Com apoio de pesquisadoras de universidades públicas brasileiras coletaram dados entre julho e agosto de 2021 fornecidos por grupos e organizações de mulheres que participaram do edital online Mulheres em movimento 2020, num total de 953 organizações formais e informais, lideradas por mulheres.
São muito interessantes os resultados, que comprovam o que canta Elza Soares: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”.
A pesquisa mostra que mais da metade da população brasileira é negra (IBGE, 2019) e está concentrada nas regiões com menores índices de desenvolvimento humano e nos maiores níveis de desigualdade do país, que são regiões Norte (73,7%) e Nordeste (69,2%). Por outro lado, nas regiões Sul (78,3%) e Sudeste (54,9%) a maioria da população é autodeclarada branca e tem melhores condições de desenvolvimento humano e menores índices de desigualdade.
Constatamos, assim, como o governo não tem políticas públicas para a comunidade preta e como, segundo as informações das organizações presentes na pesquisa, não receberam nenhuma ajuda ou financiamentos de organizações da sociedade civil e nem de órgãos estrangeiros. Consta cerca de 6,5% de apoio de ONGs internacionais, 6% de fundações privadas e 3,8% de órgãos multilaterais, o que nos mostra como é ínfima a participação internacional no financiamento das organizações e grupos de mulheres pretas. Ao mesmo tempo podemos constatar que muito pouco se investe em grupos liderados por mulheres em nosso país. Verifica-se, ainda, que as empresas privadas são as que menos financiam organizações lideradas por mulheres
Cabe salientar que a pesquisa comprova a histórica atuação política das mulheres negras, que se mostra com a predominância de 73,2% nas organizações e nos grupos. Podemos situar, também, a grande proporção de pessoas negras nas lideranças dos grupos que extrapola o percentual de 51% da população preta total.
Para enfrentar as consequências da pandemia da Covid-19, as organizações e grupos atuaram na linha de frente, facilitando a interlocução entre comunidade e Estado, ampliando e fortalecendo redes, além de propiciar acolhimento e acompanhamento à comunidade, reinventando seus ativismos. Usaram atividades digitais em muito encontros virtuais. Criaram redes, fazendo alianças, coalizões, frentes de ativismo e de estratégias coletivas.
O perfil das beneficiárias das organizações lideradas por mulheres representa grupos de mulheres de distintas gerações, raças, etnias, sexualidades, gêneros, vinculações profissionais e estudantis e em situações de vulnerabilidades.
Mulheres negras transformam o mundo! Salve Elza Soares!!!
*Helena Theodoro Bacharel em Direito e pedagoga, mestre em Educação, doutora em Filosofia e pós-doutora em História Comparada. Pesquisadora da história e da cultura afro-brasileira e professora da UFRJ.
Artigo publicado originalmente no portal de Congresso em Foco.
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: Mulheres celebram encontro internacional em show com Elza Soares (2004). Foto: A Rede PROSPERA/Acervo Fundo Elas+