Cinco anos de violência e abuso patrocinados pela União Europeia na Líbia e no Mediterrâneo Central

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Médicos Sem Fronteiras

Em 05.02.2022

Apelamos ao governo italiano e à União Europeia a acabar com todo o apoio ao sistema de retorno de migrantes, refugiados e solicitantes de asilo à Líbia e sua detenção no país

Roma, 2 de fevereiro de 2022 – Novecentos dólares significaram a diferença entre prisão e liberdade para Kouassi*, de 23 anos, que fugiu de sua casa na Costa do Marfim apenas para ser vendido a traficantes de pessoas na Líbia. Após ser resgatado de um barco à deriva no Mediterrâneo Central pelo Geo Barents, navio de busca e salvamento de MSF, Kouassi disse à equipe a bordo que ele havia sido detido na Líbia por três meses em 2020, após atravessar a fronteira com a Argélia.

“Eles [os guardas] colocam algemas em nossos tornozelos e pulsos”, disse Kouassi. “Tenho muitas cicatrizes nos tornozelos. Passei três meses algemado. Eles nos batem e nos golpeiam com bastões de madeira e metal. Ainda tenho cicatrizes de cortes com facas nas costas. Era uma prisão no deserto, uma casa inacabada para a qual fomos vendidos. Éramos cerca de 10 pessoas em uma sala, e havia várias salas. Eles retiraram tudo o que nós tínhamos. Eles pediram meio milhão de francos CFA (aproximadamente 4.739 reais) de nossos pais para nossa libertação”.

Como Kouassi, milhares de mulheres, crianças e homens são traficados, explorados, detidos arbitrariamente, torturados e têm seu dinheiro extorquido na Líbia simplesmente porque são migrantes. Ao chegar ao país, muitos migrantes são sequestrados e mantidos em cativeiro por milícias ou outros grupos armados ou usados por traficantes e contrabandistas como moeda. Os migrantes que vivem nas cidades são discriminados, perseguidos e enfrentam a ameaça constante de prisões em massa e encarceramento arbitrário.

“Catastrófico, é assim que eu descreveria a situação atual na Líbia”, diz Mustafa*, um imigrante do Mali que vive na Líbia há vários anos. “Um estrangeiro [na Líbia] é como um diamante de sangue, eles podem ser sequestrados para lucrar com eles. Dinheiro para ser liberado e talvez sequestrado novamente. Alguns migrantes acabaram morrendo na prisão e, quando isto aconteceu, foram simplesmente colocados para fora como se fossem animais. Suas famílias nem sabem onde estão enterrados. É por isso que pessoas como eu estão sofrendo aqui. E a Europa está dando ferramentas para alimentar esse sistema de sofrimento”.

Vários relatórios internacionais, bem como milhares de relatos de sobreviventes, documentaram o tratamento hediondo dado a migrantes e refugiados na Líbia¹. Em novembro de 2021, a missão de investigação da ONU na Líbia considerou essas violações crimes contra a humanidade.

No entanto, os governos europeus ignoraram esses crimes. A forte evidência não os impediu de fazer acordos com as autoridades líbias para controlar a migração para a Europa.

Acordo patrocinado pela UE

Em fevereiro de 2017, o governo italiano assinou um acordo patrocinado pela UE com o governo líbio: o Memorando de Entendimento (MoU) sobre Migração². Renovado em 2020 por mais três anos, o MoU faz parte de uma estratégia defensiva mais ampla que está sendo seguida pelos governos europeus, com base em uma abordagem de segurança contra os migrantes. Em vez de dar proteção aos migrantes, busca mantê-los afastados.

Sob este acordo, a Itália e a UE têm ajudado a Guarda Costeira da Líbia a ampliar a sua capacidade de vigilância marítima, fornecendo-lhes apoio financeiro e meios técnicos. Desde 2017, a Itália reservou 32,6 milhões de euros (cerca de 195 milhões de reais) para missões internacionais de apoio à Guarda Costeira da Líbia, com 10,5 milhões de euros (aproximadamente 62 milhões de reais) alocados em 2021.³

Essa ajuda vem à custa dos direitos humanos de migrantes e refugiados, já que praticamente todos os interceptados no mar pela Guarda Costeira da Líbia acabam em um centro de detenção no país. O acordo entre a Itália e a Líbia apoia o sistema de exploração, extorsão e abuso no qual tantos migrantes se encontram presos.

Foto: Ricardo Garcia Vilanova

“Fui torturado e espancado”, diz Bashir, 17 anos, da Somália, que foi detido por um ano em solidão e completa escuridão em uma cela apertada em um centro de detenção não oficial em Kufra. “Eu rezei a Deus para levar a minha alma em vez de ser torturado. Eles [os guardas] pegaram plástico queimado e colocaram no meu corpo. Eu estava ficando em um prédio; quando você entra, é uma sala pequena, não dá nem para enxergar ao redor e você precisa ficar sentado. Fiquei sozinho no quarto, sem nada, sem janelas. Fiquei lá por um ano. Quando fui liberado, não consegui andar de pé no primeiro dia porque não conseguia abrir os joelhos e esticar as pernas. E eu não conseguia ver nada porque fiquei no escuro por um ano”.

Na ausência de rotas seguras e legais para sair da Líbia, para a maioria dos migrantes, o único caminho para a segurança é atravessar o Mar Mediterrâneo. Muitos sobreviventes relatam várias tentativas de atravessar a considerada rota de migração mais mortal do mundo, o que resultou em detenção na Líbia e aprisionamento em um ciclo de violência, abuso e extorsão.

Foto: Ricardo Garcia Vilanova

Embora os governos europeus tenham cedido à Líbia a responsabilidade de supervisionar as operações de resgate em uma vasta área do Mar Mediterrâneo, em vez de garantir uma capacidade proativa e dedicada de busca e salvamento liderada pelo bloco no Mar Mediterrâneo Central, estima-se que 1.553⁴ pessoas morreram nesta tentativa no ano passado.

“As pessoas que cruzam o Mediterrâneo não têm escolha a não ser fazer isto”, diz Juan Matias Gil, coordenador-geral de MSF para operações de busca e salvamento no Mediterrâneo Central. “Os governos europeus têm o poder de decidir sobre as políticas de migração, mas escolheram estratégias de dissuasão e defesa de fronteiras em vez de respeitar os direitos humanos e proteger a vida das pessoas”.

“Em vez de criar alternativas voluntárias, legais e seguras para cruzar o Mar Mediterrâneo, a UE e a Itália fecharam um acordo no qual a Líbia serve como um lugar onde migrantes e solicitantes de asilo estão contidos”, diz Gil. “Enquanto isso, a Europa desvia o olhar enquanto na Líbia, um sistema de exploração, extorsão e abuso é financiado e promovido pela UE e pela Itália. Apelamos ao governo italiano e às instituições da UE a encerrar todo o apoio político e material direto e indireto ao sistema de retorno de migrantes, refugiados e solicitantes de asilo à Líbia e sua detenção no país”.

MSF realiza operações de busca e salvamento no Mediterrâneo Central desde 2015, trabalhando em oito embarcações diferentes de busca e salvamento (sozinha ou em parceria com outras ONGs). Durante esse período, nossas equipes ajudaram a salvar mais de 80 mil vidas. Desde o lançamento das operações de busca e resgate a bordo do Geo Barents em maio de 2021, as equipes de MSF resgataram 1.903 pessoas e recuperaram os corpos de 10 pessoas que haviam morrido.

* Nome alterado para proteção.

¹ https://www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/FFM_Libya/Pages/Index.aspx 

² As atividades implementadas no âmbito do memorando de entendimento são financiadas através do ‘Decreto de Missões’ italiano, o quadro legal através do qual o governo e o parlamento italianos autorizam e financiam compromissos militares internacionais, e o programa da UE ‘Apoio à gestão integrada de fronteiras e migração na Líbia’ (também conhecido como IBM, ou, em inglês, Integrated Border Management); 42 milhões de euros que financiam a IBM vêm do Fundo Fiduciário de Emergência da UE para a África (EUTF), um programa para apoiar as autoridades líbias de gestão de fronteiras, atividades de busca e salvamento no mar e em terra, bem como a aplicação da lei.

³ https://www.oxfamitalia.org/wp-content/uploads/2021/07/CS_-MIGRANTI-OXFAM_AUMENTANO-DI-NUOVO-I-FONDI-ITALIANI-ALLA-GUARDIA-COSTIERA-LIBICA_3_7_2021.pdf

⁴ Fonte IOM – Projeto Migrantes Desaparecidos; https://missingmigrants.iom.int/region/mediterranean?region_incident=All& route=3861&year%5B%5D=2500&month=All&incident_date%5Bmin%5D=&incident_date%5Bmax%5D=

Foto destaque: Ricardo Garcia Vilanova