Idlib, o capítulo mais recente da interminável guerra na Síria

Por

Agência Médicos Sem Fronteiras

Em 01.07.2020

Relatos de quem vive as consequências diretas e indiretas do conflito no país

Abu Fadel, Hassan e Iman vivem na província de Idlib, no noroeste da Síria. Assim como outros 2,7 milhões de sírios, eles foram deslocados várias vezes dentro do próprio país para escapar da violência, até que chegaram a Idlib. A última fortaleza rebelde que o exército sírio e seus aliados atacaram durante campanhas de bombardeios maciças abriga uma população exausta após nove anos de guerra, esgotada financeiramente e sem perspectivas para o futuro. De costas para a fronteira turca, Abu Fadel, Hassan e Iman contam histórias do cotidiano em uma prisão ao ar livre, marcado por expectativas, preocupação e o horror da guerra.

Em meados de junho, bombardeios voltaram a atingir a província de Idlib, a oeste de Maarat-al-Nouman. A maioria das pessoas abrigadas em áreas controladas pela oposição dentro da província vive na pobreza. Muitas se mudaram de cidades para campos nos arredores de Sarmada, Dana e Atmeh, onde equipes de Médicos Sem Fronteiras (MSF) trabalham. Mas o fechamento da fronteira entre a Síria e a Turquia torna cada vez mais difícil levar ajuda humanitária. Os deslocados internos relatam um ambiente de corrupção, extorsão e violência social. Eles estão encurralados, na medida em que a área segura para refúgio segue reduzindo com o passar dos meses e os ataques implacáveis do exército sírio.

“Não há mais lugar seguro”

Em 2013, as forças do governo sírio cercaram Ghouta Oriental, um reduto rebelde no leste de Damasco. No verão do mesmo ano, houve suspeita de ataques químicos na região. Depois de quatro anos de cerco, em 2017, Ghouta Oriental saiu da lista das zonas de escalada do conflito, o que deveria interromper os combates. Mas os ataques aéreos continuaram fazendo parte da existência diária dos habitantes. Iman Oum Ziad e seus oito filhos moravam lá. Assim como muitos sírios em Ghouta Oriental, ela preferia ser evacuada para a província de Idlib em vez de ficar em uma área controlada pelo governo. “Minha cunhada morreu nos ataques químicos em 2013”, diz ela. “Vivemos o horror, ataques aéreos dia e noite, estamos sitiados e não temos nada para comer”. O cerco total lembra os dias sem alimentos e a morte de sua mãe por falta de medicamentos.

Iman, de 43 anos, lembra de ter sido deslocada várias vezes dentro de Ghouta para escapar do conflito. “Estávamos fugindo de um lugar para outro, dia após dia, para sobreviver. Fugimos seis ou sete vezes, de casa em casa, e o bombardeio continuava se aproximando.” Em fevereiro de 2018, o exército sírio lançou uma ofensiva aérea de larga escala sobre a região e muitas pessoas foram mortas. Quando o governo tomou o controle de Ghouta Oriental, Iman se recusou a ficar lá e foi evacuada com a família para Idlib, em abril de 2018. “Sempre lembraremos dessa data, foi quando tivemos que deixar o lugar que amamos. Sofremos muito e presenciamos muitos horrores aqui.”

Ela, o marido e os filhos pegaram um ônibus para Idlib. Desceram no Harem e foram para Saraqeb, onde moraram em uma casa por um tempo, mas o aluguel era caro demais. Eles foram deslocados mais uma vez, agora para um dos muitos campos da província, onde vivem desde então. “Não sabemos mais para aonde ir. A qualquer momento, os ataques aéreos podem voltar.”

Antes da guerra, ela era dona de casa e o marido trabalhava nos campos, com a ajuda de um de seus filhos. Ele nunca saiu de Ghouta vivo; foi morto por um atirador de elite enquanto levava pão. Hoje ninguém mais trabalha na família e as condições financeiras estão piorando. Desde o início de maio de 2020, o valor da libra síria caiu pela metade, causando inflação alta. A desvalorização é resultado da crise no Líbano, onde a maioria dos sírios mantém suas economias, das sanções dos EUA contra a Síria e dos efeitos prejudiciais na economia por causa da pandemia de COVID-19.

Iman diz que não há como voltar. “Não podemos retornar a Ghouta enquanto o regime ainda estiver em vigor. Eles nos fizeram entender que, se retornássemos, seríamos detidos ou executados. Não há mais nenhum lugar seguro, nem mesmo em Idlib.”

No campo onde encontraram refúgio, há pouca ou nenhuma água potável, os banheiros são comunitários, falta eletricidade e as crianças estão sem estudar há dois meses por causa do coronavírus. “Até mesmo antes da pandemia as crianças não iam para a escola com frequência, por causa dos combates e dos bombardeios”, acrescenta ela. “Tento ensinar aos meus filhos o que eu sei; eles já perderam quase dois anos de estudos quando ainda morávamos em Ghouta.”

Duas das filhas de Iman ficaram em Ghouta Oriental. Elas se falam por telefone ou mensagem de voz, mas muito pouco, porque as pessoas têm medo de fazer ligações e serem presas pelas forças do governo. “Minha família inteira está dividida. Alguns estão em Idlib e outros em Ghouta Oriental. Tudo desabou”.

Ela relata o pânico de sua filha de 10 anos, Jana, toda vez que ouve aviões no céu. “Antes eu levava os meus filhos para se esconderem no banheiro ou embaixo da escada. Jana chora sem motivo, fica triste o tempo todo. Ela tenta me tranquilizar, mas sinto que algo está errado. Jana desenha muito sobre os horrores da guerra e os aviões. Após o cerco em Ghouta Oriental, agora estamos enfrentando um novo cerco aqui em Idlib.”

“Continuamos esperançosos, mas é exatamente isso o que está nos matando”

Hassan Abou Noah era um estudante em Talbiseh, na província de Homs. Jornalista, ele participou dos protestos. “Era meu dever resistir”, diz o homem de 33 anos. Durante as negociações entre o governo e a oposição, ele foi evacuado para a região de Khan al-Assal, na província de Aleppo. Ele ficou lá por um ano, mas, no final de janeiro de 2019, os ataques aéreos se intensificaram e ele foi forçado a fugir.

“As pessoas estavam muito assustadas. Era como se eu estivesse em câmera lenta. Eu podia ver todos correndo ao meu redor, mas me senti entorpecido. Entramos em um carro e partimos, um atrás do outro”. Os aviões continuaram bombardeando a região, enquanto a população fugia para Idlib; um avião passou apenas 50 metros acima da cabeça de Hassan e de seus filhos.

Hassan vive na cidade de Idlib desde 2019. Ele mora na casa de um amigo porque não tem dinheiro para alugar um espaço para si, e sua esposa e filhos estão com parentes em outro vilarejo. Não há acomodações suficientes na cidade para todos, independentemente de terem dinheiro.

“Olho para Idlib e vejo uma cidade deprimida, onde não há esperança.” Os preços são exorbitantes, pois o comércio com o mundo exterior é impossível. A província está completamente isolada. “A paralisia e a tristeza são as mesmas nos campos e na cidade”. Idlib também não tem água corrente, então, a água tem que ser comprada e, como todo o resto, é muito cara.

“Eu passei por todas as emoções que existem. Fiquei com medo, pensei que talvez tudo isso seja de fato normal, me senti vazio e, em uma ocasião estranha, feliz. Agora me pergunto se não estou acostumado com a situação. Tínhamos medo quando ouvíamos o som dos tiros. Aqui, ouvimos os aviões e os ataques aéreos e começamos a conversar sobre outra coisa.”

Os parentes e amigos de Hassan que ficaram em Talbiseh disseram a ele que homens em idade de combate têm medo de sair porque podem ser recrutados à força pelo exército sírio.

Toda vez que seu filho caçula, Adam, ouve os ataques aéreos, ele pergunta ao pai se é um trovão. Hassan diz que sim.

“Não quero sair da Síria. Tudo o que eu quero é morar sob o mesmo teto que a minha família. Ninguém sabe o que vai acontecer. Politicamente, nada está claro, nem nas nossas vidas. Continuamos esperançosos, mas é exatamente isso que está nos matando.”

Sair da Síria significa pagar contrabandistas, que ajudam as pessoas a chegar à Turquia. Se a família toda fugisse, custaria cerca de 12 mil dólares (aproximadamente 65 mil reais). “Eu poderia vender meus rins”, diz ele, rindo.

“Estamos presos aqui e só há uma saída”

Abou Fadel nasceu e cresceu na província de Idlib, na vila de Talmenes, a cinco quilômetros de Maarat-al-Nouman. Ele passou os últimos seis meses morando em uma barraca de menos de 20 metros quadrados, em um acampamento improvisado a oeste da cidade de Idlib, com sua esposa e cinco filhos, cujas idades variam de 4 a 15 anos.

“Em vez de me perguntar como eu consigo sobreviver, a pergunta é se estou sobrevivendo”, diz Abou, de 40 anos. “A resposta é não. Pego dinheiro emprestado de amigos e parentes sem saber quando poderei pagá-los de volta ou sequer se conseguirei fazer isso antes de morrer. Recebemos algumas doações de organizações humanitárias, mas não é regular.”

De vez em quando, ele fecha os olhos e se imagina de volta a Talmenes, o vilarejo onde nasceu. Ele está brincando com seus filhos perto da casa de dois andares de seus pais. Seus sonhos e aspirações se foram, ele só quer voltar para antes de 2020. “Esqueci como era minha vida antes da guerra. Eu só quero voltar ao ano passado, quando o regime nos bombardeava de tempos em tempos. Pelo menos não havia tropas terrestres nos ameaçando”, confidencia. “Acordo em um estado de ansiedade permanente, preocupado com os meus filhos. Eles não estudam desde que saímos de casa. Eles amavam a escola. Ontem, decidi casar minha filha mais nova, Safa, para garantir seu futuro. Ela estará com o marido em breve. É o melhor que pode acontecer com ela.”

No início deste ano, Abou Fadel e sua família tiveram que fugir dos ataques aéreos lançados contra Talmanis. “Os bombardeios seguiram por cinco dias e depois chegaram as tropas terrestres. Foi quando decidimos que nossa única opção era sair de lá. Fugimos em um caminhão com dezenas de outras famílias para a cidade de Idlib. Passamos uma semana em uma mesquita e depois montamos este acampamento aqui”.

Em junho de 2020, devido aos combates, mais pessoas foram deslocadas no sul da província de Idlib e no norte da província de Hama. “O regime sírio considera terroristas todos os que vivem em Idlib. Meu primo foi preso em Hama enquanto sacava dinheiro. Ele nunca mais voltou. Com as tropas avançando em terra, no melhor cenário, serei recrutado à força pelo exército. E, no pior, serei preso.”

A barraca em que a família vive é um freezer no inverno e um forno no verão. Abou Fadel passa seus dias andando pelo campo e bebendo chá com seus vizinhos. Se a situação se tornar ainda mais sombria, eles buscarão refúgio o mais próximo possível da fronteira turca, onde acreditam ser mais seguro. “Estamos presos aqui e só há uma saída.”