Ditadura da imagem

Por
Eugenio Jerônimo*

Em 04.07.2020

O muito jovem estagiário reclamou ao veterano jornalista:

— Tu mandou o emoji errado.
— Como errado? Mandei a carinha derramando duas lágrimas…
— Sim, sorrindo. E a notícia era triste. Devia ter mandado a carinha com uma lágrima só, que é a que está chorando.
Argumentou o jornalista:
— E duas lágrimas não são mais tristes que uma?
— No caso não, as duas lágrimas são de alegria, disse o menino.
Reconheceu o jornalista que estava meio perdido para se comunicar pelas redes sociais, com esse emaranhado de figurinhas. Tudo muito frio, impessoal, igual, sintético. Para concordar ou afirmar, a mãozinha com o polegar para cima; discordar, mãozinha com o polegar para baixo; elogiar, mãozinhas batendo palmas. “Eu estou torcendo/rezando por você”, duas mãos postas. “Trata-se de um ato abominável”, carinha vomitando gosma verde.
Desafiou o jornalista:
— Sim, e se eu quiser dizer talvez nessa língua das cavernas? Aí não tem…
— A carinha do boneco com o dedo no queixo, respondeu apressado o jovem.
Podia ser prático, mas era frio, impessoal, enfadonho, repetitivo. Voltou ao mesmo ponto o profissional. E a discussão continuou:
— As palavras também são repetitivas. Usamos sempre as mesmas palavras.
— Mas, cada vez que empregamos uma palavra, damos uma entonação diferente.
— Na fala. Na escrita, não tem isso.
— Tem entonação sim na escrita. A exclamação, a interrogação, a vírgula, o ponto e vírgula, os dois pontos, o ponto final, a reticência…
— Por isso não, os emojis estão sempre sendo renovados.
— Entendo, como neologismos de desenhos.
O jovem estagiário tinha uma certa razão, reconhecia o profissional. Entretanto, o problema não se resumia àquelas carinhas usadas em substituição a palavras e até frases inteiras. A questão era mais séria, estávamos vivendo uma ditadura da imagem. Aprofundava. Qualquer cena da vida cotidiana era agora codificada com uma foto.
A fácil obtenção de imagens, com os dispositivos móveis, e o ambiente propício a sua propagação, com as mídias sociais, haviam instaurado a supremacia da imagem sobre as palavras no reino da linguagem. Mais de que supremacia, tratava-se mesmo de processo de aniquilação da palavra.
Ele não era nenhum ignorante que desconhecesse a importância do signo imagético na história das civilizações. E, particularmente, muito admirava o desenho e a pintura. Das cenas das cavernas, em que um homem persegue um animal a flecha, ao sorriso da Monalisa, que vai intrigar os olhares de todos os séculos. Mas tudo tinha seu lugar. À palavra o que é da palavra; à imagem o que é da imagem.
Como o absolutismo icônico, assim redefiniu o jornalista o que já tinha chamado de ditadura da imagem, as pessoas tinham pudor de escrever. Para enviarem qualquer texto que ultrapassasse duas linhas, pediam desculpas pelo textão. Ironizou:
— Imagina Proust hoje ao concluir o sétimo volume de Em Busca do Tempo Perdido. Todo cheio de dedos, dizendo “Desculpa o textão”.
O veterano repórter não usaria mais as carinhas em suas mensagens nas redes sociais. E fez uma provocação. Voltaria a usá-las quando alguém fizesse desenhos que adequadamente expressassem as passagens:
1.      “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”.
2.      “Tire seu sorriso do caminho/Que eu quero passar com a minha dor”.
3.      “É que Narciso acha feio/O que não é mesmo espelho”.
4.      “pãos ou pães, é questão de opiniães…”.
5.      “Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir”.Com o indicador da mão direita sobre o queixo, o jovem estagiário imitou o bonequinho que significa dúvida, ou pensando.*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria)

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