Diálogos possíveis entre as Ciências da Religião e a abordagem freireana para o ensino religioso*
Ricardo Jorge Silveira Gomes*
Em 05.07.2020
Partindo do diálogo centrado na perspectiva de superação da contradição básica entre oprimidos e opressores, Paulo Freire se propõe a problematizar a educação para o desenvolvimento de uma ação transformadora da realidade, capaz de dar vez e voz aos “esfarrapados do mundo”(FREIRE, 1987, p. 23), por meio da ação-reflexão que se processa na prática educacional dialógica, cuja ação está centrada nos problemas da realidade, a fim de promover o reconhecimento da situação desumanizante em que os sujeitos oprimidos se encontram ( FREIRE, 1987, P. 30-31).
Reconhecendo a “ação cultural” como sendo o papel da ação política junto aos oprimidos, Paulo Freire (1987, p. 53) propõe a construção de uma educação para a liberdade, situação na qual os oprimidos podem vislumbrar o rompimento da cultura do silêncio que lhes é imposta pela estrutura social opressora, que os aliena, domina, e por fim, os coisifica. Desta forma, vemos o quanto a cultura é um elemento chave para repensarmos a educação com vistas a promover a superação de tal situação.
Quando pensamos a respeito do Ensino Religioso e na sua longa trajetória até então, verificamos que a despeito das inúmeras reformas educacionais já realizadas, o desafio de concretizar uma educação neutra, laica e que contemple o fenômeno religioso de modo isento histórica, filosófica, antropológica e socialmente falando, ainda se constitui no maior obstáculo à prática docente nesta disciplina, o que dificulta o pleno alcance de uma educação integral e que seja capaz de promover os valores necessários ao desenvolvimento de uma convivência solidária e respeitosa.
Por meio da aproximação entre ciência e religião, conforme proposto por Lana Fonseca (2015, p. 217), é possível estabelecer relações que promovam o diálogo entre os inúmeros tipos de conhecimento elaborados e acionados pela humanidade na construção da realidade, de modo a desenvolver um modelo que leve em consideração as fronteiras, bordas e paralelos metodológicos, partindo da compreensão de que existem questões que, embora se encontrem nos limites da ciência, não podem ser respondidas por esta.
Dessa forma, nos propomos a refletir criticamente sobre como efetivar uma educação para todos, abrangendo a diversidade cultural e religiosa no âmbito do Ensino Religioso, na perspectiva da concretização de uma educação para todos, a partir do diálogo entre a abordagem freireana, e o campo epistemológico das Ciências da Religião, de modo a estabelecer relações que possibilitem o repensar crítico desta disciplina, tendo em vista que esta tarefa consiste num exercício existencial:
É um ato de criação. Daí que não possa ser manhoso instrumento de que lance mão um sujeito para conquista do outro. A conquista implícita no diálogo é a do mundo pelos sujeitos dialógicos, não de um pelo outro. Conquista do mundo para a libertação dos homens. (FREIRE, 1987, p. 79).
1 – Ideia tirada do Artigo publicado IX Colóquio Internacional de Paulo Freira da UFPE. Autores: Ricardo Jorge Silveira Gomes e Adriana Guilherme Dias da Silva Figueiredo.
Compreendemos que o estudo do fenômeno religioso a partir de uma perspectiva antropológica, desenvolvido no campo das Ciências da Religião, apresenta grandes possibilidades de avanço para a potencialização deste exercício dialógico tão necessário para a construção de uma educação pautada na diversidade cultural religiosa, característica da formação histórica do povo brasileiro.
Segundo Frank Usarski (2013, p. 51), existe a necessidade de fomentar o debate, não apenas acerca do modelo de Ensino Religioso a ser desenvolvido no país, mas também a respeito dos parâmetros epistemológico e metodológico que devem nortear os estudos no campo religioso. Vários programas de graduação e pós-graduação em Ciência(s) da(s) Religião(ões) – nomenclatura esta que varia de acordo com o Programa, segundo atesta Eduardo Cruz (In: PASSOS; USARSKI (Orgs.), 2013, p. 37) –, vêm desenvolvendo um trabalho em cima da perspectiva transdisciplinar para o Ensino Religioso.
Tendo em vista que o termo Ciência da Religião alude a um empreendimento acadêmico norteado pelo interesse de um conhecimento específico, sua orientação está firmada num conjunto de teorias específicas que se dedica de modo não-normativo ao estudo das religiões, tanto histórica quanto sistematicamente, com o foco em suas múltiplas dimensões, manifestações e contextos socioculturais. Isso significa que não existe uma perspectiva de instrumentalização de seus objetos em prol de realizar a apologia de uma determinada crença, tendo em vista que a Ciência da Religião defende um ideal epistemológico, baseado na indiferença diante do seu objeto de estudo de tal forma que:” […] o cientista da Religião exclui de sua agenda a questão da ‘última verdade’ e não se permite avaliar aspectos religiosos em comparação com as normas de outra religião ou com quaisquer outros critérios ideológicos”.(USARSKI, 2013. p. 51).
Tal perspectiva quando transposta para o Ensino Religioso, promove a construção de práticas que promovam não somente o necessário diálogo entre a ciência e a religião, conforme colocado por Lana Fonseca (2015), mas também a promoção do conhecimento numa perspectiva integral, além de fornecer subsídios a uma prática de ensino focada na diversidade cultural religiosa. Lidar com as particularidades, aproximações e divergências, bem como a polifonia e polissemia típicas do cenário religioso brasileiro no contexto educacional, requer o repensar de uma prática de respeito ao outro, por meio de uma proposta plurimetodológica transdisciplinar, na qual o conhecimento se dá entre e além das mais diversas áreas do conhecimento, uma vez que, conforme Gilbraz Aragão, “ os tempos atuais nos mandam ‘sinais’ que apontam para a exigência da abertura de novos horizontes e perspectivas” (2015, p. 16).
Assim, a metodologia transdisciplinar surge com um novo modelo de compreensão científica a partir da física quântica, propondo a revisão dos modelos de operação do saber, para além da lógica até então estabelecida sobre o verdadeiro e falso, para incluir a lógica do terceiro termo incluído, na qual a conceituação da realidade passa pela multidimensionalidade e considerando vários níveis de realidade: micro e macro, interior e exterior, natural e social, histórico e interpessoal, permitindo que o fenômeno das religiões passe a abrigar as contradições que surgem do seu pluralismo, contribuindo para a formação de uma nova ética, pautada no amor enquanto vivência, local onde a diferença pode ser afirmada para além das divergências que separam e excluem.
Deste modo, o desenvolvimento da necessária neutralidade e observância, ao princípio da laicidade, é fomentado de modo a atender às exigências do contexto atual, promovendo o respeito por todas as tradições, e até pela ausência de crença em quaisquer delas, de tal forma que o acesso às diversas tradições religiosas se torna objeto de estudo, na promoção da informação necessária a uma educação que possibilite a todos uma tomada de decisão sobre o sentido de suas crenças, ritos e interditos, ou seja, uma fé esclarecida e que se construa de forma mais solidária e em respeito às outras (ARAGÃO, 2015, p. 12). Como bem pontuou Paulo Freire (1987, p. 52), ninguém liberta ninguém ou consegue libertar-se sozinho, antes, os homens se libertam em comunhão. Portanto, o desenvolvimento da autonomia pode ser construído a partir de modelos cognitivos, forjados num contexto transdisciplinar no qual o contato com as mais diversas culturas, sobretudo no âmbito do Ensino Religioso, fortalecido por meio de uma “ação cultural”, algo essencial para a produção de conhecimentos cada vez mais complexos no mundo atual.
*Ideia tirada do artigo publicado no IX Colóquio Internacional de Paulo Freire, na UFPE. Autores: Ricardo Jorge Silveira Gomes e Adriana Guilherme Dias da Silva Figueiredo.
*Ricardo Jorge Silveira Gomes é mestre e doutorando em Ciências da Religião e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve aos domingos.
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
O articulista, meu amigo Ricardo, me fez lembrar Rubem Alves:
“existem pessoas das quais as perguntas religiosas foram radicalmente extirpadas? A ausência dos atos sacramentais e a ausência dos lugares sagrados, da mesma forma como o desejo sexual não se elimina com os votos de castidade”.
O diálogo da ciência da religião com as outras ciências se estabelece na fala de Nietzsche, Assim falava Zaratustra: ” Aqui estão os sacerdotes; e muito embora sejam meus inimigos… Meu sangue está ligado ao deles.”
Excelente tema a ser debatido ,tanto na ceara didática das universidades, como nas áreas distintas de conhecimento e formação dos valores; sociais e morais da crença da família, mediante suas tradições patriarcais. Acredito que cada indivíduo vêm de seu berço famíliar com um tema formado e não discutido a cerca das emblemáticas relações, que por sua vez muito complexas,pois, há coisas espirituais que não têm uma explicação total atraveis do crivo : sociólogo, didatico e metodológico e sim totalmente na sua origem,PORTANTO, essas relações se fundem ,potencializam,evoluem e servem de embasamentos SÓ em parte e não o todo. Há peculiaredades similares, más, em seus núcleos há limites para sua homogeneidade. Muito louvável essa tendência freiriana e que, indiscutivelmente,deixa um legado muito importante para a sociedade brasileira e ainda contribuiu para o crescimento didático, no entanto,
” A PARTE DE UM TODO NÃO É TODO E SIM PARTE, COMO O TODO SEM PARTES ,NUNCA SERÁ TODO E SIM PARTE”
Muito oportuno o questionamento. Deixando claro que, o conhecimento trás oportunidades e nos leva a entender que as diferenças, são barreiras que com o diálogo podem ser ultrapassadas. Mesmo nas questões religiosas.
Ótimo tema, nunca se fez tão necessário esse diálogo entre a religião e a ciência como nos dias atuais. Do ponto de vista mais pedagógico, a dificuldade de promover esse diálogo, acredito ser por conta que, nos apresentam um país laico, todavia, laicidade não implica em desconhecimento. O homem precisa se conhecer e conhecer seu próximo, porém conhecer esse próximo significa ser o mesmo, para que ninguém assuma a postura de opressor, afinal, quem oprimi a ele mesmo? A cultura de um homem, de um grupo, de uma nação é seu DNA, a ciência está para conhecer e interpretar esses códigos genéticos, possibilitando o diálogo, no diálogo não existe opressor nem oprimido, e sim conhecimento e construção.
A sociedade brasileira sempre foi opressora e ainda mais quando se trata de diversidade religiosa. Como é possível pensarmos em uma diversidade cultural e religiosa? Como podemos oprimir a religião
A cultura é o que identifica um povo, porém quando esse respeita e conhece a sua cultura. Se entendermos a questão cultural também será possível uma maior compreensão e respeito a essa diversidade religiosa. Portanto é imprescindível esse exercício nas escolas através da educação .Sendo assim podemos dizer que é na escola que aprendemos a conhecer e nos tornarmos livres e críticos, dignos de sermos pessoas melhores.
Boa noite meu amigo!
Tua explanação é perfeita, contudo, lamentavelmente o que presenciamos nas salas de aulas, são colegas tendencionistas onde lamentavelmente não respeitam as opções religiosas alheia.