Sudão: tempestades de areia, burros e tabaco de mascar

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Desde o início dos combates, em 2003, dezenas de milhares de pessoas morreram e milhões foram deslocadas – Foto: Jinane Saad/MSF

Médicos Sem Fronteiras

Em 06.07.2020

No final de maio, depois de 13 anos prestando assistência médica em Tawila, no oeste do Sudão, Médicos Sem Fronteiras (MSF) concluiu seu projeto. Esta pequena cidade no estado de Darfur do Norte sofreu ataques no início dos anos 2000 que forçaram seu povo a fugir. Mais tarde, recebeu ondas de deslocados internos que escapavam da violência em outras áreas.

“Tawila era uma cidade fantasma. Algumas pessoas vinham verificar as casas abandonadas, mas por volta das 16h, bem antes do pôr do sol, voltavam aos campos localizados nas redondezas”, lembra Gibreel. Ele fazia parte da equipe de MSF que, no final de 2007, conduziu trabalho inicial para abrir um projeto permanente no local. Antes disso, as visitas de MSF à Tawila eram pontuais. “Estávamos em uma escola. Alertados pelo barulho do nosso gerador, alguns homens armados apareceram e reclamaram que não haviam sido informados sobre a nossa presença. Eles dispararam um morteiro (como um tiro de aviso) e tivemos que parar o gerador.”

Essa experiência foi a primeira do que se tornaria rotina de trabalho em um local tão instável, onde MSF prestou cuidados médicos abrangentes no hospital local e nos vilarejos vizinhos. Tawila foi um dos muitos pontos críticos do conflito entre o governo sudanês e grupos rebeldes em Darfur, uma região com um território um pouco menor do que a Espanha. Desde o início dos combates em 2003, dezenas de milhares de pessoas[1] morreram e milhões foram deslocadas.

Quando Tawila foi atacada e saqueada por uma milícia do governo em 2003, a maioria de seus habitantes foi para El Fasher, a capital do estado. Enquanto a cidade estava esvaziada, os campos começaram a aparecer nas proximidades, com dezenas de milhares de pessoas deslocadas internamente que haviam fugido de outras áreas de conflito, incluindo Jebel Marra e Jebel Si.

“Quando começamos o projeto, a maioria de nossa equipe também era deslocada. Suas experiências eram muito recentes. Eram pessoas que haviam perdido tudo em ataques realizados por diferentes milícias. Não havia nada para recuperar, então eles não queriam voltar para casa a qualquer custo”, diz Mohammed Elmutwakil, que trabalhou como médico em Tawila entre 2007 e 2008.

Área de terras agrícolas e origem de um tabaco popular

Tawila está localizada em um vale. É formada principalmente por terras agrícolas e é uma encruzilhada para grupos nômades de pastores. E cortada por um rio que enche durante a estação chuvosa entre junho e outubro. As chuvas suavizam as temperaturas que podem facilmente ultrapassar os 40°C nos meses anteriores. Tempestades de areia intensas, chamadas haboob, deixam os cílios brancos. Os burros, comumente usados para transportar mercadorias, às vezes são enviados sozinhos, sem pessoas, em caravanas por longas distâncias carregando madeira ou carvão.

A cidade tinha um mercado movimentado e era muito próspera antes de 2003. As pessoas cultivavam vegetais e cereais, incluindo sorgo, e um tabaco local premiado, chamado tombac, feito de folhas secas e depois mastigado. Tradicionalmente, tombac tem sido uma importante fonte de renda e impostos, pois é consumido intensamente em outras partes do Sudão. Antes do conflito, alguns comerciantes locais possuíam propriedades em Cartum e El Fasher devido aos ganhos obtidos nos negócios.

No entanto, o conflito levou o sistema de saúde e a maioria dos outros serviços da região ao colapso. “Não havia cuidados de saúde, nada”, diz Mohammed. “As necessidades das pessoas eram enormes. Todas as organizações humanitárias se retiraram em um primeiro momento por causa da insegurança”, acrescenta Gibreel.

Respostas de emergência frequentes

Mas MSF renovou e expandiu as instalações de saúde em Tawila. Como centro de nossas atividades, começamos a administrar clínicas móveis em áreas próximas e lançamos respostas de emergência com frequência. Isso incluiu o combate a surtos de doenças, como cólera, malária, sarampo, dengue e tosse convulsa, aliviando a desnutrição e o tratamento de vítimas.

Hoje, cerca de 54 mil pessoas vivem em Tawila. A maioria está alojada em cinco campos, incluindo o conhecido como “Ruanda”, uma referência às tropas ruandesas da Missão das Nações Unidas para a União Africana (UNAMID), encarregadas de patrulhar a área.

Os campos foram formados, ampliados e transformados em diferentes momentos, à medida que novos grupos de pessoas deslocadas chegavam após explosões de violência em outras regiões. Cerca de 55 mil pessoas chegaram em 2012, seguidas por outras 36 mil em 2016.

Em cada ocasião, os deslocados chegavam com quase nada e a equipe de MSF precisava adaptar rapidamente sua resposta. Às vezes, lançando uma campanha de vacinação. Outras vezes, melhorando o suprimento de água limpa e as condições de saneamento nas áreas onde os recém-chegados haviam se estabelecido.

A princípio, as pessoas geralmente ficavam em tendas espalhadas, feitas de folhas de plástico e  madeira, onde famílias inteiras, muitas vezes chefiadas por viúvas, dividiam o pequeno espaço. Com o tempo, os campos se tornaram mais densamente povoados e essas tendas foram transformadas em cabanas reforçadas com palha e outros materiais.

Desnutrição, mordidas de cobra e complicações na gravidez

“Em 2017, alguns meses após a última onda de deslocados internos, enfrentamos uma crise significativa de desnutrição”, diz Gibreel. Em questão de dias, todos os quartos do hospital de MSF foram convertidos em enfermarias para tratar crianças desnutridas. “Havia até 60 crianças em cada ala. Elas eram muito magras, mas foi um alívio ver sua rápida recuperação. Depois de menos de duas semanas, muitas estavam se tornando saudáveis novamente.”

Além das emergências, a cada dia muitas mulheres vinham ao hospital com complicações na gravidez ou pós-parto ou com crianças que sofriam de diarreia e doenças infecciosas. Outros pacientes chegavam em busca de aconselhamento psicossocial. Desde 2012, o hospital apoiado por MSF em Tawila realizou mais de meio milhão de consultas médicas, tratou quase 18 mil crianças com desnutrição aguda grave e ajudou mães a dar à luz a 3 mil bebês.

Às vezes, a equipe enfrentava situações trágicas que poderiam ter sido evitadas. “Recebíamos pacientes com gangrena avançada causada por picadas de cobra. Eles visitavam um curandeiro tradicional, mas isso não resolvia o problema. Quando chegavam ao hospital, já era muito tarde e muito difícil de tratar”, lembra Mohammed.

Desafios: alguns burocráticos, outros brutais

Não foi fácil para MSF trabalhar em Tawila. Durante nossos 13 anos no local, as equipes sofreram 14 incidentes de segurança perpetrados por grupos armados, como bandidos ou partes das várias facções em guerra. Isso incluiu vários roubos de carros, assaltos e tiroteios, ataques à casa de hóspedes e incursões violentas nas instalações de saúde.

Nenhum de nossos profissionais foi morto durante esses incidentes, mas dois ficaram feridos. Sequestros de pessoal humanitário eram habituais na região e impactavam várias organizações. Em algumas ocasiões, como em 2008, 2009, 2010 e 2013, nossas equipes tiveram que se retirar por semanas ou meses até que fosse seguro retornar.

“Depois de um dos roubos de carro, percebemos um grupo de deslocados correndo atrás dos ladrões para tentar recuperar os veículos”, lembra Gibreel. “Alguns deles estavam chorando porque queriam que ficássemos. Isso nos comoveu tanto que ficou claro que tínhamos que continuar naquele lugar, apesar de todas as dificuldades.”

Se deslocar pela região também foi complicado para nossas equipes. Tawila fica a apenas 35 quilômetros de El Fasher, onde os pacientes mais críticos eram encaminhados e a maioria dos suprimentos essenciais, adquiridos. No entanto, durante anos não houve voos de helicóptero entre Tawila e a cidade, o que significa que nossas equipes tiveram que fazer longos desvios, dirigindo por trilhas irregulares e poeirentas, para sua segurança. Um voo curto tornou-se uma viagem que poderia levar até sete horas.

A equipe também enfrentou obstáculos burocráticos recorrentes, como restrições à chegada de profissionais internacionais ou de certos suprimentos, o que tornou o trabalho muito mais desafiador. “Também enfrentamos muitos desafios ao tentar recrutar pessoas. Nem todo mundo estava pronto para trabalhar em um local considerado muito perigoso, um ponto em que convergem as tensões entre diferentes grupos rebeldes e facções militares”, diz Mónica Camacho, ex-coordenadora-geral de MSF e atual coordenadora de programas para a África Oriental. “Muitas vezes era frustrante ver que alguns grupos de pessoas não podiam chegar ao hospital ou às nossas clínicas móveis, e nem nossas equipes eram capazes de alcançá-las”.

Menos insegurança, mais atividade econômica

Nos últimos anos, alguns progressos nas negociações de paz levaram a uma melhoria significativa do acesso e mobilidade na área, o que impulsionou o comércio. Ficou mais fácil chegar a El Fasher, o que levou outras organizações humanitárias a estabelecerem uma presença mais permanente em Tawila. “A melhoria da economia é visível”, diz Benjamin Mutiso, coordenador de projetos de MSF em Tawila até março de 2020. “Algumas pessoas vão vender produtos no mercado em El Fasher e, a partir daí, alguns produtos, como o tabaco local, são enviados para Cartum. Outras pessoas foram capazes de reconstruir partes da cidade e alguns edifícios mais estáveis foram erguidos.”

Se o número de burros de cor branca, símbolo de status para as comunidades locais, aumentar substancialmente, a tendência será confirmada.

Tawila, no entanto, não estava imune aos eventos de 2019. Após a queda do presidente Omar al-Bashir, um certo grau de incerteza se abateu sobre a cidade, como ocorreu em todo o país. Hoje, as pessoas, mesmo que desejem retornar às suas áreas de origem, ainda enfrentam uma decisão difícil depois de anos de deslocamento prolongado e violência ocasional. “Muitos fugiram várias vezes, perderam parentes e nem foram capazes de enterrar seus entes queridos. Alguns não podiam carregar todos os filhos enquanto fugiam dos ataques”, diz Gibreel. As pessoas em Tawila tiveram que fazer uma longa jornada para aceitar suas memórias.

Como parte de um longo processo acordado com as autoridades, MSF reduziu gradualmente as ações nos últimos meses. E no fim de maio, entregou as atividades médicas restantes em Tawila ao Ministério da Saúde

Após o auge do conflito em Darfur, na segunda metade da década de 2000, as equipes de MSF estabeleceram projetos nos diferentes estados que compõem a região. Momentos difíceis foram vividos em 2009, quando o governo sudanês expulsou vários profissionais de MSF, juntamente com outras organizações humanitárias, e em 2015, quando MSF encerrou muitos dos projetos no país por causa de questões burocráticas.

Assim como em Tawila, nos últimos anos MSF teve uma grande presença em outras áreas do estado de Darfur do Norte, executando projetos em vários momentos em lugares como Shangil Tobayi, Kaguro, Saraf Umra, Kabkabiya, Dar el Salam, Dar Zaghawa, El -Sireaf e Sortoni. El Fasher também foi a base de uma equipe dedicada de resposta a emergências, focada no lançamento de intervenções em todo o estado. No início deste ano, MSF iniciou atividades na cidade de Rokero, no estado de Darfur Central, para melhorar a prestação de serviços de saúde para as pessoas que vivem no epicentro de um conflito.

MSF trabalha no Sudão desde 1978. Atualmente, nossas equipes também prestam assistência médica nos estados de Cartum, Darfur Ocidental, Darfur Central, Nilo Branco, Al-Gedaref e Kordofan do Sul e lançam respostas regulares a emergências em outras partes do país. Em março, MSF começou a apoiar o Ministério da Saúde no combate à COVID-19, com serviços de logística, assistência técnica, medidas de controle de infecção e treinamento da equipe de saúde.



[1]A ONU estima que pelo menos 300 mil pessoas morreram devido a violência e doenças durante o conflito em Darfur e 2,5 milhões foram deslocadas. Segundo o ACNUR, 1,6 milhão de pessoas ainda permanecem longe de suas casas.