“A dor e a delícia de ser o que é”

Por

Enildo Luiz Gouveia*

Em 18.06.2023

O título deste artigo é uma frase da música ‘Dom de Iludir’, de Caetano Veloso. Na esteira das reflexões existencialistas e, por isso, necessárias, a aceitação ou não daquilo em que nos tornamos é um dos nossos maiores desafios. Na verdade, somos seres incompletos; acrescentamos e retiramos algo de nós com o passar dos anos. Mas, há algo que permanece na mudança, assim já dizia o filósofo Parmênides.

Ao completar completar cinco décadas de existência, ontem, sinto-me ainda inquieto e impaciente com uma série de coisas. Outras, como a morte, já não me perturbam mais e, sequer, alimento quaisquer ansiedade, medo ou desejo. No caminho de estar “em paz com o mundo e comigo” (Pensar em você, Chico César) aceitar-se e monitorar-se se faz exercício contínuo na vida. As crises são inevitáveis, porém, contornáveis quando se conhece e autoconhece o seu lugar no mundo.

Da infância e adolescência, poucas lembranças e praticamente nenhuma saudade. A pobreza e o abandono paterno dificultaram muito. A juventude trouxe-me a consciência e a indignação necessárias, além do ingresso no mundo do trabalho formal e a chegada à universidade pública, que à época era quase inalcançável para os que vem de baixo. O apoio e a preocupação materna fez toda diferença para suportar os desafios impostos. A minha mãe foi ‘Pãe’ do seu jeito. Alegrou-se, sofreu e prestigiou aqueles momentos. Deus a tenha! Alguns poucos amigos também tem minha gratidão e admiração.

Desta fase adulta e agora – quase senil – sob o olhar se desenham respostas antes incompreensíveis, e outras dúvidas continuam a motivar a busca pelo conhecimento. Sede insaciável, assim como a vontade de ver um mundo mais justo, sem fome nem privilégios. O exercício da tolerância é constante, exceto em casos onde a mentira tenta se impor como verdade e a injustiça tenta ser naturalizada.

Agora, como cantava Renato Russo, “vejo em parte, mas então veremos face a face”, é tudo ainda mais claro. De tudo que vivemos; de todos os lugares que conhecemos; as decepções, as alegrias, as dores e amores tiveram um propósito de nos trazer até aqui e, assim, permitir poder olhar para trás e se perguntar: valeu a pena? O que foi construído? Qual o bem e a herança positivas foram deixadas? E amanhã, continuaremos a jornada, ou sentaremos “no trono de um apartamento com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar?” (Ouro de Tolo, Raul Seixas). Em frente!

*Enildo Luiz Gouveia – Professor, poeta, cantor, compositor e teólogo.  É integrante da Academia Cabense de Letras – ACL