Não me convide para self-service
Eugenio Jerônimo*
Em 11.07.2020
Todas as mesas do restaurante self-service estão ocupadas. Apenas a minha tem lugar. O casal, pratos pendurados nas mãos, se aproxima. Ele move a sobrancelha e cochicha alguma coisa; ela, fala:
— Com licença. Podemos…?
O costume das boas maneiras em geral e as normas tácitas de comportamento nesse espaço não me dão margem a uma resposta negativa. Além disso, há placas nas paredes com os dizeres: Compartilhe sua mesa. Claro que podem. Disse um sim protocolar e mecânico.
A mulher chama o garçom. Os dois vão dividir um refrigerante. Mas o homem quer uma bebida zero; ela, normal. Cada um defende sua escolha. Na verdade, cada um desqualifica a opção do outro.
— Muito açúcar, o normal, acusa ele.
— Zero tem gosto de remédio, recrimina ela.
Diante da indecisão do casal, o garçom inquieta-se. Informa a uma mesa ao fundo que já vai atendê-la.
Continua o impasse. A mulher propõe dividirem um suco. O marido acha que um suco pra dois aí já é demais, ou de menos. Dispensam o garçom sem fazer o pedido.
Enfiamos as cabeças nos pratos, e o almoço segue em silêncio, só com o barulho dos talheres.
Na frente das bandejas de comida, a fila aumenta. As pessoas dividem os olhares entre as opções de pratos e um eventual lugar que vai ficar vago nas mesas.
Uma moça e um rapaz se cumprimentam, com beijinho e tudo. Um homem hesita perante a alface, sem saber qual folha escolher se todas têm igual aspecto. No ambiente há um rumor de feira livre.
Entre as promessas feitas e quebradas para o ano que se inicia está a de deixar de almoçar em self-service. Pelos menos três razões me induzem a esse desejo de mudança de hábito: a higiene, pois os alimentos ficam expostos ao manuseio de todos; o tipo de comida e o relacionamento imposto com pessoas desconhecidas.
Tão intensa é a conversa que se torna impossível gotículas de saliva não temperarem o cardápio.
Todos os restaurantes desse tipo, ao menos os populares, são os mesmos. As invariáveis saladas. As iguais carnes. Os previsíveis peixes. Os repetitivos feijões e arrozes.
Nem todo dia nossa previsão de humor está favorável a nos reunirmos à mesa com estranhos. Ainda que, para tão breve e superficial contato, não seja necessário saber se os comensais votam com o governo ou com a oposição; torcem por nosso time ou pelo arquirrival.
Acho que são três motivos nada desprezíveis para evitar os self. E há ainda um quarto, que decorre do tipo da comida apresentada.
Com o modismo e o status de chique dos restaurantes no peso, por quanto tempo resistirá a diversidade culinária brasileira? Terão futuro o peixe na telha, o bode na brasa, a maxixada, o peixe com jambu, o carneiro no buraco, o arroz mexido com galinha? Evidente que algumas dessas iguarias já frequentam os self-services, mas plastificadas, artificiais, deslocadas e dignas de piedade como um leão de circo.
Depois do longo silêncio, o casal com quem divido a mesa começa um diálogo.
Ele:
— Deu um probleminha no exame de Júnior.
Ela:
— Meu Deus, que houve? Mostra…
Ele:
— Não. Nada demais. Verme.
Chamo o garçom. Desisti da sobremesa. Afinal nem serviam mais doce de goiaba em calda. Só tinha doces pós-modernos. Pavê, pudim, manjar…
Na minha agenda anotei uma resolução para o próximo ano. Não almoçar mais em restaurante self-service.
*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria)
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