Câmara do Cabo homenageia Colette Catta com criação de medalha
José Ambrósio dos Santos*
Em 09.01.2025
“Assistia mães trancarem portas e janelas e sair na madrugada para ir aos canaviais deixando crianças de nove anos cuidando de outras mais novas. Também vi mulheres prepararem comida para seus maridos bêbados enquanto seus filhos, com fome, desmaiavam. A cada 15 dias morria uma criança.”
Colette Catta em depoimento ao jornal Tribuna Popular em agosto de 2007.
O legado transformador e inspirador da enfermeira e missionária francesa Colette Catta, que renunciou à vida aristocrática para viver entre os pobres educando e salvando vidas no paupérrimo distrito de Juçaral, acaba de ganhar mais um expressivo reconhecimento: foi instituída pela Câmara Municipal do Cabo de Santo Agostinho a Medalha Colette Catta.
Proposta pela vereadora Gisele de Dudinha, a honraria será concedida a pessoas nascidas ou não no Cabo de Santo Agostinho e também a pessoas jurídicas que tenham prestado relevantes serviços na zona rural do município nas áreas da assistência social, promoção da adoção legal, erradicação da pobreza, das causas humanitárias, da valorização da educação e outras ações que impulsionem o desenvolvimento e o bem-estar da zona rural. A Resolução número 001/25 publicada anteontem foi a primeira da nova Legislatura (2025/2028).
Colette Catta chegou ao Cabo de Santo Agostinho em 1974. O Brasil vivia os chamados anos de chumbo, sob a ditadura Civil/Militar instaurada dez anos antes, em abril de 1964. Foi neste contexto da vida do País que Colette Marie Josephe Catta se estabeleceu em Juçaral, distrito localizado na zona canavieira, com a missão de se doar na ajuda aos mais pobres e a salvar vidas.
Rodeado por engenhos de cana-de-açúcar a comunidade era considerada um dos lugares mais pobres do emergente município. O destino de grande parte das crianças e jovens era a morte precoce por desnutrição, a dureza dos canaviais e os biscates, que são trabalhos que não exigem qualificação profissional.
A realidade encontrada em Juçaral chocou Colette Catta, apesar de ela já conhecer a miséria do nordeste brasileiro através de reportagens e da peça adaptada do livro Morte e Vida Severina, do pernambucano João Cabral de Melo Neto. Também conhecia nordestinos que chegavam a São Paulo fugindo da seca. Ela passou 20 anos cuidando de pobres favelados do Tatuapé, aonde chegou em dezembro de 1953, de navio.
Freira da Congregação Irmãzinhas da Assunção, entidade religiosa com atuação em todo o mundo, em áreas industriais, Colette era uma das religiosas do Convento Irmãzinhas da Assunção. Além de conselheira, atuou como mestra das noviças do Segundo Ano desde 1959 até a sua saída da Congregação, em 1973.
Em Juçaral, a fome e a desnutrição consumiam a vitalidade de famílias inteiras e a morte, principalmente de crianças, era uma ocorrência constante. Os pequenos caixões azuis conduzidos por pessoas esquálidas e aparência resignada com a morte dos seus filhos já faziam parte da paisagem bucólica, mas perversamente desigual.
“Assistia mães trancarem portas e janelas e sair na madrugada para ir aos canaviais deixando crianças de nove anos cuidando de outras mais novas. Também vi mulheres prepararem comida para seus maridos bêbados enquanto seus filhos, com fome, desmaiavam. A cada 15 dias morria uma criança.”
Colette Catta em depoimento ao jornal Tribuna Popular em agosto de 2007.
Com a ajuda do padre Carlos (Charles) de Becco, um belga que chegara em Juçaral em 1965 e iniciara um trabalho de ação social, e ao lado de duas amigas – a também francesa Josianne Saintpierre e Marieta Fernandes Braga -, Colette, cheia de sonhos e idealismos, começou a integrar-se à desconfiada comunidade. Elas visitavam as famílias em suas humildes moradias, faziam curativos e aplicavam injeções. Testemunharam muitas vezes mães dividirem um ovo para quatro crianças. Era grande o índice de mortalidade infantil por desnutrição.
Seu imenso coração fez com que aceitasse a guarda de duas crianças de famílias acometidas por doenças e incapacitadas para cuidar dos filhos. Foram eles Tony (três meses) e Damião (um ano e meio), que mais tarde receberam o sobrenome Catta. Foi então que Colette organizou uma pequena escola maternal. Em pouco tempo eram 30 crianças na escola e o local ficou pequeno.
Com a ajuda de amigos e parentes da Europa construiu a Escolinha Irmãozinhos de Esperança para 60 crianças de quatro a seis anos de idade.
Colette e as amigas observavam que muitas das crianças de quatro anos não alcançavam o desenvolvimento normal para a idade, em razão da desnutrição.
“Havia crianças que vomitavam o que comiam. O estômago não aceitava” – relembrou Marieta em tom melancólico, acrescentando que em várias ocasiões ajudou a retirar lombrigas que saíam pela boca e até pelo nariz das crianças.
Foi então que em 1984 surgiu a Creche Irmãozinhos de Esperança, possivelmente a primeira creche rural de Pernambuco. A creche recebia recém-nascidos e crianças com até três anos de idade. Elas passavam o dia inteiro na creche.
Entre os muitos apoiadores do trabalho dedicado de Colette destaque para a Associação Les Amis de Juçaral, criada em 1984 pelo topógrafo francês Christophe Marquer e seu amigo Didier Beauchet. Inicialmente a atividade consistia em conscientizar e pedir apoio financeiro a amigos para os projetos de Colette. Em 1990, com a doação de agricultores, a associação passou a produzir suco de maçã, e as contribuições se tornaram perenes. Christophe Marquer é casado com Maria Helena da Silva (Lenice), natural de Juçaral, a quem conheceu em 1984 quando visitou a conterrânea Colette.
Com a chegada à adolescência e a adoção formal de Tony e Damião, Colette criou a Comunidade Arca de Noé, em 1989, que recebia rapazes e moças que batiam à sua porta na esperança de mudar de vida estudando, refletindo, orando, vivendo em comunidade, trabalhando e se preparando para o futuro.
Até o falecimento de Colette no dia 04 de novembro de 2016, aos 95 anos de idade, centenas de jovens haviam passado pela Comunidade Arca de Noé. Dos primeiros, muitos tinham frequentado a Creche e a Escolinha Irmãozinhos de Esperança. Ficavam em média entre dois e três anos considerados inesquecíveis pelos participantes.
“Dos primeiros, muitos estão formados, casados, com saúde. São hoje homens e mulheres que pensam.”
Colette Catta em entrevista ao jornal Tribuna Popular em agosto de 2007
A Creche e a Escolinha Irmãozinhos de Esperança continuam funcionando sob a coordenação de Severina Maria da Conceição, Branca, como é conhecida. Em 2011, cinco anos antes do falecimento de Colette, José Carlos da Silva, o Carlinhos, deixava a Comunidade Arca de Noé pondo um ponto final naquela modalidade de ação que resgatou a cidadania e abriu novas perspectivas para centenas de jovens que tocam a vida espalhados pelo mundo inspirados nos ensinamentos da velha mãe.
A luta, a dedicação e a doação de Colette Catta a credenciaram a receber um dos principais reconhecimentos do Governo francês. Em 1989 ela foi condecorada com a insígnia de Cavaleira da Ordem Nacional do Mérito, outorgada pelo presidente François Miterrand.
Outra honraria que a deixou muito feliz foi a que a tornou cidadã do município ao qual doou-se por 42 anos, desde que chegou em 1974 até o falecimento em 2016. O título de Cidadã do Cabo de Santo Agostinho foi proposto pela vereadora Ana Selma dos Santos, em abril de 2008.
O trabalho de Colette foi tão intenso e marcante que na missa de corpo presente, no dia 05 de novembro de 2016, o então Arcebispo de Olinda e Recife, dom Fernando Saburido, disse que a comunidade se despedia da mãe de Juçaral.
O legado de Colette Catta é apresentado no livro A mãe de Juçaral, assinado pelo jornalista José Ambrósio dos Santos e lançado em 2023. O prefácio é de dom Fernando Saburido, que é filho de Juçaral, e tem como Uma mulher movida pelo amor.
Também no livro A mãe de Juçaral a sua última cuidadora, Mauriceia Ana de Carvalho Silva, refere-se a Colette Catta com reverência e diz sempre pedir a sua intercessão em suas preces.
“As conquistas da nossa amada Colette Catta não param mesmo após o seu falecimento. Esse poder divino que sempre lhe seguiu e abençoou vem, a cada dia, mostrando quem foi essa mulher. Uma gigante, uma guerreira que em busca de igualdade, solidariedade e amor ao próximo, pautou a sua vida entre os pobres. Percebe-se que seus feitos outrora passados em conversas, reportagens e ultimamente no livro A mãe de Juçaral, estão sendo perpetuados. Como filho e parte integrante de momentos vividos ao lado dela, fico muito feliz e agradecido à vereadora Gisele de Dudinha e ao amigo José Ambrósio por eternizarem o legado de minha mãe na medalha que será cunhada em seu nome e que servirá para homenagear mulheres guerreiras de nosso município e que buscam, assim como minha mãe, mostrar que é possível cada um fazer a diferença ocupando seu espaço em prol de uma cidadania mais justa e igualitária. Essa medalha não é de Colette Catta simplesmente, é de todo povo cabense.”
Tony Catta
*José Ambrósio dos Santos é jornalista, escritor e integrante da Academia Cabense de Letras.
Ótimo, como de costume. Ambrósio é muito bom no que faz