O muro da abolição

Por

Eugenio Jerônimo*

Em 18.07.2020

É um terreno plano, fica numa área dita nobre e tem dimensões suficientes para construção de um condomínio habitacional de alto padrão.

Além da localização privilegiada, o terreno possui outro ativo. Limita-se ao Norte com um condomínio luxuoso. O único problema, identificam os empresários, é a fronteira ao Sul: uma favela que se derrama e que, apesar de estar ali há décadas, parece que diariamente constrói seus escombros. Mas nada que um muro não resolva. Decerto, o primeiro item encomendado ao arquiteto, um alto cinturão de concreto dará segurança aos novos condôminos, que não compram apenas uma moradia, um lar, mas também paz particular.

Ao longo dos anos, existia lá um campo de pelada. Um campinho, na verdade, que ocupava apenas um espaço muito pequeno. Estranha que o terreno tenha sobrevivido à fúria imobiliária por tanto tempo. Só agora os olhos dos empreendedores descobriram esse tesouro. Entretanto, não foram os únicos. Os olhos da Prefeitura também o descobriram e, para indignação da iniciativa privada, a municipalidade decidiu desapropriá-lo e construir uma praça pública.

A decisão da Prefeitura não frustrou somente os empresários que planejavam erguer no capinzal do terreno um belo condomínio residencial. Apartamentos nascentes, de trezentos metros quadrados, um por andar. Também tirou o sono dos moradores do prédio vizinho.

A praça, avaliam, é um risco à sua segurança porque vai atrair pessoas da favela. Concordam que há gente de bem lá, honesta, trabalhadora, mas, entre ela, muitos suspeitos. Até acham que o povo tem direito a um espaço comum, onde crianças brinquem, adolescentes e jovens joguem, velhos se reúnam em torno de suas mesas de dominó, enfim, onde as pessoas possam cuidar da saúde, divertir-se e exercitar a sociabilidade. Entretanto, pensam, o alicerce da sociedade é a segurança. O lazer não pode se constituir ameaça à integridade física dos cidadãos.

Logo, os moradores do luxuoso condomínio fizeram organizada pressão para que a Prefeitura altere o projeto da praça, construindo um competente muro que a isola da favela. O poder público se opôs a essa réplica do Muro de Berlim. Porém o condomínio não desistiu e transformou a reivindicação em ação judicial.

Mal as máquinas feriram as primeiras capas do solo no serviço de terraplenagem, as obras foram embargadas. Neste momento, diante de um magistrado, o processo aguarda a decisão.

Gostaria de ver o exercício de eufemismo que o advogado fez em sua peça jurídica. Como denominou os pretos e pardos que vivem na favela? Como descreveu aquilo que consideram ameaça aos donos dos luxuosos apartamentos? Ou não há eufemismo nenhum, só hipérbole?

Claro que importa o que sairá da sentença do magistrado. Dela depende a construção de uma parede segregadora – monumento à perpétua escravidão – ou de uma praça democrática e acolhedora. Mas a sentença do juiz não nos salvará do muro que a sociedade brasileira ergueu desde as suas origens para proteger os ricos do que considera a ameaça dos pobres.

*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria). Escreve aos sabados.