ECA, 30 anos de avanços e ameaças

Por

Fernando Silva*

Em 18.07.2020

Em tempos de pandemia do Covid–19 é preciso ter atenção para contribuir com uma avaliação quanto aos avanços e retrocessos nas três décadas de existência do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Não é uma tarefa simples, mas é possível jogar luz no processo avaliativo e ir além. Indicar desafios. Para tanto, recorre-se a olhares da História, do Direito e dos Direitos Humanos.

Primeiro, é preciso assinalar que as legislações de atenção a criança e ao adolescente são marcadas por diferentes concepções. Para ilustrar, a Lei do Ventre Livre (Nº 2.040/1871) estabeleceu que as crianças eram livres, mas, ficavam como propriedade dos senhores escravocratas até 08 anos. Porém, mães e pais permaneceram escravos, formalmente, até a Lei Áurea (1888). Em 1916, o Código Civil estava preocupado com o “ideário da norma da família burguesa”, conforme aponta a historiadora Silvia Arend (2011). Já o Código de Menores (1927) destinava-se “exclusivamente para o controle da infância e da adolescência abandonadas ou delinquentes” (Marcilio, 1998). Uma análise dos marcos normativos possibilita entender uma evidente dicotomia de classe e de poder econômico, marcas do racismo estrutural, que constrói as relações sociais no Brasil.

As construções social, histórica e jurídica que se praticam são marcadas pela lógica menorista e adultocêntrica, que também se materializaram no Serviço de Assistência aos Menores (SAM, 1941) e na Política de Bem-Estar do Menor (1964). Ambos, destinados ao controle dos excluídos socialmente, sobretudo, os “menores” abandonados, desvalidos e “delinquentes”. 

Em segundo lugar, é com o processo de redemocratização da Sociedade e do Estado, final dos anos 1970 e, sobretudo, na década seguinte, que o Brasil passa a construir as bases de uma nova perspectiva jurídica, fundado numa outra concepção política, ética, humanitária e pedagógica. São anos essenciais de luta pelo fim da Ditadura Civil-Militar (1964-1985), com antagonismos. Cabe lembrar que 1979 é declarado o Ano Internacional da Criança (ONU) e da entrada em vigor de outro Código de Menores. Este, com a marca da Doutrina da Situação Irregular, permanecendo restrito na sua aplicação, como indicava seu antecessor de 1927. As forças democráticas continuaram com atuações fundamentais. A Campanha da Diretas Já (1984) e o Movimento por uma nova Constituição (1986-87) são ilustrativos das forças democráticas e populares.

É da organização, da mobilização e das lutas democráticas que temos, na Constituição Federal (CF) de 1988, a inserção de quatro artigos (Art. 204, 226, 227 e 228), que passam a ter um novo olhar e cuidar para as crianças e adolescentes brasileiros, sem qualquer distinção, ainda que juridicamente. Em síntese, os artigos corresponsabilizam a Família, a Sociedade e o Poder Público para a garantia de direitos; fixa a maioridade penal aos 18 anos e define a participação popular na formulação e no controle de políticas públicas. Em síntese, não são mais o juiz e poder executivo, os atores centrais que devem efetivar direitos humanos para as infâncias e adolescências.   

Com a breve caracterização histórica é possível situar o Estatuto da Criança e do Adolescente como regulamentador da CF/1988 e da Convenção dos Direitos da Criança (ONU, 1989).

Frente ao apresentado, quais os avanços? O entendimento é de que são jurídicos e sociais. Na área do Direitos e dos Direitos Humanos, o Brasil passa a ter a doutrina da proteção integral para todas as crianças e adolescentes, que deve se expressar na primazia na proteção e socorro, precedência no atendimento, preferência das políticas públicas e na destinação privilegiada dos recursos públicos. A participação das organizações representativas da sociedade civil na formulação, deliberação e no controle passa a ser assegurada na composição dos conselhos nacional, estaduais, Distrito Federal e municipais de direitos da criança e do adolescente. É criado o Conselho Tutelar no âmbito dos municípios, enquanto importante instrumento de defesa para que o Estatuto da Criança e do Adolescente seja efetivado. Com a mesma direção, são criadas varas da infância e juventude, delegacias e promotorias especializadas, ainda que não seja uma realidade em muitos municípios brasileiros.

O referido Estatuto é aperfeiçoado com a aprovação (Congresso Nacional) e sanção (Presidencial) de 31 novas leis, que tratam de diversos aspectos, entre os quais a garantia dos direitos previdenciários e trabalhistas aos conselheiros tutelares. A garantia da convivência familiar e comunitária é potencializada. Temos a institucionalização do Sistema de Garantia dos Direitos de Crianças e Adolescentes pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) e a criação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). Este tem na Resolução N.º 119/2006 e na Lei Federal N.º 12.945/2012, às bases fundamentais. Leis importantes passam a orientar o fazer políticas específicas, a exemplo da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS, 1993) e da Lei de Diretrizes e Base da Educação (LDB, 1996). E, apesar de todos os projetos que tramitaram e tramitam no Congresso Nacional, foi mantida a maioridade penal aos 18 anos, uma das conquistas da CF/1988. E deve ser preservada.

Na área social, o entendimento é de que se tem avanços. Contudo, são incompletos e desiguais. A título de confirmação do binômio analítico, é revelador que o modelo do racismo estrutural se expressa, perversamente, quando em 2015, houve 11.403 homicídios de crianças e adolescentes, sendo 10.480 do sexo masculino, maioria negro. E que estimativa do UNICEF, com base nos dados do DATASUS, 2016, aponta 31 crianças e adolescentes assassinadas, por dia, no Brasil.

A mortalidade infantil tem avanços. A taxa por mil nascidos vivos melhorou de 1990 para 2015 passando de 47,1 para 13,3. Mas teve aumento de 5,3% entre 2015 e 2016. A desnutrição crônica recuou de 1996 – 2006 de 13,4% para 6,7% (50% de redução) para menores de 05 anos. Porém, é muito maior entre as crianças e adolescentes indígenas (30%) e, sobretudo, entre os ianomâmis (80%). 

O que fazer para ir além? São inúmeros desafios. Lutar pela revogação da Emenda Constitucional 95/2016, que de acordo com estudo do IPEA (2016) deixarão os direitos à assistência social e à saúde com menos 868 bilhões reais e 654 bilhões de reais, respectivamente. Que é imprescindível a prorrogação, com constitucionalização, do Fundeb, previsto para acabar no ano em curso.

É necessário que a luta pela Democracia e pelos Direitos Humanos sejam materializadas no enfrentamento dos discurso, projeção, programas e práticas de governos, que são refratários as conquistas das últimas três décadas no Brasil. Não é possível aceitar os projetos do Governo Bolsonaro e de governos estaduais, a exemplo do Rio de Janeiro e de São Paulo.

É imprescindível que a atuação do campo democrático e popular seja pedagógica, sendo importante e necessário ressignificar a linguagem e a gramática dos Direitos dos Direitos, com capacidade de comunicar, informar e educar para superação da cultura e das práticas punitivas, menorista e adultocêntrica. 

Estas, inclusive, estão presentes entre muitos que dizem ter atuação e fazer a promoção e a defesa dos Direitos Humanos e da Democracia. Que a proteção integral seja priorizada e não as proteções específicas, que minimizam direitos. Que as políticas sociais não sejam reféns do capital financeiro e especulativo. Que o processo eleitoral para prefeituras e câmaras de vereadores (2020) seja uma oportunidade de construção de propostas e que os eleitos (prefeitos/as, vereadores/as) respeitem, integralmente, sintonizada com a CF/1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente.

Referências:

AREND, Silvia Maria Fávero. Do direito de convivência familiar: em foco o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990-2010). In: MIRANDA, Humberto (Org.). Estatuto da Criança e do Adolescente: conquistas e desafios. Recife: Ed. Universitária da UFRPE, 2011.

MARCÍLIO, Maria Luiza. História Social da Criança Abandonada. São Paulo: Hucitec, 1998.

*Fernando Silva é mestrando em Educação, Culturas e Identidades pela Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE)/Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ) e integrante do Centro de Cultura Luiz Freire (CCLF), Olinda – PE. Recife, PE. Julho de 2020. jfnando.silva@gmail.com