Artigo

O que se cobra de pessoas negras no mundo acadêmico

Gislene Aparecida dos Santos*

Em 28.02.2025

Escrevi um texto para reflexão intitulado Racismo institucional, medos, ameaças e outros males. Nele, entre outros aspectos, discuto o que se cobra das pessoas negras para que sejam toleradas no mundo acadêmico. Não digo aceitas porque a aceitação, de meu ponto de vista, envolve tratamento igualitário, que é o contrário de hierarquizações, discriminações, desumanização e violências.

A equidade diz respeito a criar mecanismos por meio dos quais se enfrente as desigualdades raciais estruturadas nas sociedades. O tolerar é algo muito menor. Se tolera coisas e pessoas se determinadas condições forem cumpridas ou se somos obrigados a “aceitar” o que ou quem, espontaneamente, não aceitaríamos. Eu penso que seja esse o lugar que as pessoas negras ocupam nas universidades de hoje, no Brasil: são toleradas, quando muito.

Pessoas negras, se quiserem ser toleradas, precisam preencher alguns pré-requisitos que as tirem do campo da ameaça. Para isso, devem embranquecer concreta ou simbolicamente. Concretamente, isso se associa a ter maior “passabilidade”, se aproximando mais da brancura socialmente desejada. Simbolicamente, as “possibilidades” de embranquecimento são enormes, mas todas se resumem ao que se definiu como tentar se aproximar do que a branquitude entende como positivo, correto, razoável ou importante em todos os sentidos possíveis.

Assim, espera-se que as pessoas negras, para serem toleradas:

a) Sejam simpáticas e elegantes. O problema é o que se entende por elegância e se nela cabem todos os tipos de corpos humanos e etiquetas ou somente é a mimetização de um único tipo e comportamento. Esteticamente, até os cabelos de pessoas negras devem ser vistos como não ameaçadores. Não à toa os cabelos das pessoas negras, em especial de mulheres negras, são criticados e literalmente monitorados de várias formas. Devem estar alisados, pois se aparentam com aquilo que a branquitude entende como “elegância”. Quando trançados, soltos, ou penteados de qualquer outra forma, podem até ser tolerados em algumas situações, mas não serão considerados elegantes.

b) Sejam discretas ou fiquem invisíveis não gerando incômodos.

c) Não formem guetos, ou seja, não se aproximem de outras pessoas negras. Isso significa isolar, criticar, às vezes perseguir, às vezes prejudicar as pessoas negras entendidas como não assimiladas. Há uma frase interessante em um documentário que diz que uma pessoa negra pode ser uma convidada bem aceita em algumas situações. Duas pessoas negras já são consideradas um gueto, tamanho o imaginário em torno do que ser negro representa e os perigos associados a isso.

d) Ajam como brancas (“act white”, diziam os críticos do assimilacionismo em referência ao comportamento de pessoas negras que negavam suas origens). Em sociedade de hegemonia da branquitude, o que é considerado normal é o comportamento das pessoas brancas. Assim, se alguém “quer” ser tolerado tem que imitar esse comportamento, mesmo que isso envolva a total negação de si. Não se atenta para o fato de que pessoas possam viver de modos diversos. Ou seja, as pessoas negras precisam se deixar assimilar. No Brasil, isso é evidente quando se observa as perseguições de práticas religiosas associadas à matriz africana, por exemplo.

e) Devem se aproximar e ter pessoas brancas como modelos de ser e viver. Alguém já disse que racismo é um crime ontológico. Cercar-se de pessoas brancas é um excelente sinal de que não se é uma ameaça.

f) Absolutamente não devem falar sobre racismo.

g) Devem se dispor a demarcar diferenças entre elas e outras pessoas negras demonstrando que estão comprometidas com o processo de assimilação.

h) Devem “se limpar” o máximo que puderem de signos e símbolos que remetam à negritude.

i) Devem ser subservientes demonstrando que entendem as regras que asseguram a hegemonia da branquitude e que não estão interessadas em revertê-las, desafiá-las ou alterá-las.

j) Devem aceitar que por maior que seja a subserviência isso não as torna complemente confiáveis.

k) Devem trabalhar muito mais do que todos os outros, já que, além do trabalho regular, devem acrescentar a isso o trabalho associado ao pagamento das taxas de embranquecimento e de compensação pelo estigma. Somada à cobrança de taxas, há a percepção de que alguém negro esteja em débito se tal pessoa não pagou a taxa de embranquecimento.

Em resumo, o que eu chamo de taxa de embranquecimento ou taxa de compensação pelo estigma é o processo que naturaliza o tratamento dispensado a pessoas negras como se sempre devessem algo a outros e à sociedade, ou seja, estivessem sempre socialmente “negativadas” e precisassem pagar por esse débito dando diferentes demonstrações de que “aceitam” a total negação de si mesmas, o que impede que desenvolvam autoestima. Devem, ainda, realizar o esforço e o trabalho contínuo, cotidiano e intenso para serem toleradas nesses espaços que as negam e não as reconhecem como detentoras de direitos, dignidade, méritos e humanidade.

É tido como natural/normal ter expectativas de que pessoas negras se comportem como descrito acima e é visto com estranhamento e maior desconfiança quem se porte de outros modos. Portar-se de outro modo, se negando ao pagamento de taxas de embranquecimento e de compensação pelo estigma, é um processo de resistência e luta contra essa estrutura de poder.

*Gislene Aparecida dos Santos, professora da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP

Imagem: Web

Artigo publicado originalmente no Jornal da USP

One thought on “O que se cobra de pessoas negras no mundo acadêmico

  1. É difícil ser negro num país onde o racismo estrutural ainda perdura. Gislene narrou ,de forma genuína,como o negro deve se comportar.

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