Irmão vota em irmão: aspectos históricos da política no Brasil

Por

Ricardo Jorge Silveira Gomes*

Em 19.07.2020

Ainda, ao início dos anos 80, o Brasil vivia a ditadura militar. Porém, o presidente Ernesto Geisel, já desde o final da década de 70, acenava para a criação de condições de uma abertura política “lenta, gradual e segura”, a qual deveria levar o país a algum tipo ainda não claramente definido de governo civil, o que pressupunha o fim do militarismo (REGO; MARQUES, 2005). Ao longo da década de 80, pressões por eleições resultaram no movimento das “Diretas Já”, um envolvimento cívico de várias camadas da sociedade que contou com a participação de intelectuais, artistas, pessoas ligadas à Igreja (e outras religiões, exceto a Católica), partidos políticos que se formavam (como o PT, PMDB e PSDB), entre tantas personalidades políticas.

A bandeira deste movimento era a da promoção do processo de redemocratização do país, possibilitando a participação da sociedade civil na escolha de seus governantes. Embora as diretas não tenham tido o efeito que se esperava (uma vez que o Congresso ainda era controlado pelo governo, retardando as eleições apenas para o final da década), mesmo que indiretamente um presidente civil foi eleito: Tancredo Neves. No entanto, Tancredo faleceu em 21 de Abril de 1985 e não chegou a assumir o cargo para comandar a transição para a democracia, fato que levou José Sarney, seu vice, a assumir a presidência da República.

Do ponto de vista econômico, tínhamos herdado os altos índices de endividamento dos períodos e dos planos de desenvolvimento anteriores e enfrentávamos dificuldades para a rolagem da dívida por parte das instituições credoras. No início dos anos 80, as políticas econômicas eram do tipo “ortodoxas”, o que significa cortar custos do governo e aumentar a arrecadação. Com a chegada de Sarney, em 1985, as políticas começaram a se tornar heterodoxas, diferentes daquelas defendidas pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), o qual impunha regras duras de ortodoxia econômica ao Brasil como condição para manter seus cofres abertos às necessidades brasileiras.

Outros agravantes eram os altos índices inflacionários do período e a estagnação econômica. Segundo Thomas Skidmore (2000, p. 271), para efetuar os pagamentos da dívida externa “o governo recorria à crescente dívida pública interna e à criação de dinheiro, o que significava que o serviço da dívida externa havia forçado o governo brasileiro a alimentar as chamas da inflação que estava crescendo…”. Por conta deste contexto econômico conturbado, houve tentativas de reforma monetária e vários planos econômicos foram adotados, como o Plano Cruzado, Plano Bresser e Plano Verão.

Infelizmente, todos fracassaram ou seus resultados foram insuficientes para manter a estabilidade econômica que chegaria apenas à década de 90, nos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardozo. Assim, as décadas de 80 e 90 ficaram conhecidas como as “décadas perdidas” – do ponto de vista econômico, do crescimento e do desenvolvimento – o que culminou numa hiperinflação.

A partir da década de 90, o sucesso da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) produziu um “efeito mimético” sobre as outras igrejas evangélicas. O desejo de participar concretamente da política fez com que as igrejas pentecostais e neopentecostais “se espelhassem” no modelo político da Universal, remodelando o quadro político-religioso brasileiro.

A influência da igreja iurdiana na política pode ser logo comprovada nas eleições de 89, quando a cúpula da Universal posicionou-se abertamente em favor de Collor. As palavras de Edir Macedo ilustram isso: Após orar e pedir a Deus que indicasse uma pessoa, O Espírito Santo nos convenceu de que Fernando Collor de Mello era o escolhido. (PIERUCCI; PRANDI, 1996, p. 193).

Com essa expansão religiosa, a sociedade brasileira também foi se transformando. A cidade moderna e profana e tudo o que dela faz parte, foi novamente invadida pelo sobrenatural, pelo sagrado, pelas criaturas de Deus e pelo Diabo. As diversas esferas da sociedade (economia, política, cultura, entre outras) passaram a ser gradualmente disputadas pela religião. E dessas, a que mais recebeu atenção foi a esfera política.

Desde a constituinte de 1987, onde 33 parlamentares evangélicos estavam envolvidos, a presença dos evangélicos na política vem ganhando destaque e sendo crescente. Deste grupo, os pentecostais e neopentecostais são a grande maioria.

Nota-se na retórica político-religiosa que a igreja é quem indica os candidatos, os elege através dos votos de seus fiéis e não admite atuações independentes. Existem orientações políticas que devem pautar a atuação de todos, bem como comandos setoriais. Os que não se alinham à política hierárquica da IURD são retirados dos seus quadros – religioso e político. (FIGUEIREDO FILHO, Valdemar, 2005, p. 89).

Mediante o exposto, entendemos que nas igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais pode-se perceber a vertente política, na qual há a defesa da ideia de que a corrupção presente na política brasileira é a antítese dos princípios cristãos morais e éticos. Desse modo, os “homens e as mulheres de Deus” são os mais aptos para estabelecer uma nova moral pública e uma nova ética na política. Assim, a corrupção justifica e legitima o ingresso na política, pois eles se consideram uma espécie de reserva moral da sociedade.

Nos primeiros dez anos do século XXI o debate sobre a presença das religiões na esfera pública foi marcado pelas polêmicas em torno do Acordo Bilateral assinado em 2008 entre a Santa Sé e a República Federalista Brasileira e pelas discussões sobre as consequências da participação dos evangélicos no poder legislativo para a política de ampliação dos Direitos Humanos. O desafio de interpretar as relações do religioso com a política e com a ordem social mais ampla tem provocado um deslocamento teórico e conceitual na bibliografia nacional (ORO, 2011), com alguns analistas adotando o conceito de laicidade, de origem francesa (CASANOVA, 1999), ainda que reconheça a pertinência das críticas.

De acordo com Miranda (2009), profundas mudanças de cunho sociocultural sacudiram a sociedade, atingindo instituições como a família, a universidade, a organização política, a vida econômica, e também a religião. A velocidade de tais transformações não permitiu às instituições se adequarem aos novos desafios que passaram a surgir, gerando assim, um mal-estar como manifestações de uma crise que não se pode definir com precisão.

Mediante o autor acima, é possível percebermos as mudanças efetuadas, embora instituições importantes tenham permanecido sem dar frutos por razões várias, algumas delas provindas da própria igreja, ainda que se reconheça a pertinência das críticas às interpretações unidirecionais do processo de secularização. Desta forma, observamos que segue uma via alternativa para analisar a atuação dos coletivos evangélicos na arena pública brasileira nos dez primeiros anos deste século.

Como em outras sociedades, a hierarquia da Igreja Católica no Brasil se reposicionou na esfera pública a partir de uma série de novas formas de atuação na sociedade civil e na política partidária. Na primeira metade do século, pode-se citar a criação da Liga Eleitoral Católica (1932), dos Movimentos de Ação Católica (1935), do Partido Eleitoral Católico (1932), e do Partido Democrático Cristão (1945). Posteriormente, segmentos dessa instituição se engajaram na organização dos setores populares em várias partes do país e foram atores políticos importantes não só no combate à ditadura militar, mas também na criação do Partido dos Trabalhadores (PT) (MACHADO, 2006).

Desta forma, as mudanças nos dispositivos de regulamentação do campo religioso, assim como da participação dos evangélicos na esfera política no século XX, demonstram que o princípio legal de separação entre Estado e Igreja não retirou a religião da arena pública brasileira. Contudo, a crescente participação dos evangélicos na política eleitoral nas últimas duas décadas representa uma ampliação da arena política e o surgimento dos novos atores na sociedade civil e política. Dito de outra forma, esse fenômeno não deve ser interpretado como uma desprivatização ou mesmo uma emergência do aspecto religioso na esfera pública, uma vez que os católicos já vinham atuando ativamente nesse espaço (CASANOVA, 2008).

O foco sobre a atuação político-eleitoral dos evangélicos tem de certa forma eclipsado seja a continuidade, seja a emergência de outros processos nos âmbitos da “sociedade civil eclesial” e da relação entre sociedade civil, Estado e mercado, nos quais é possível divisar uma tentativa de organizações religiosas confrontarem os problemas postos pela questão da diversidade cultural, da participação democrática e das transformações do Estado e do governo; construírem redes e articulações com organizações laicas da sociedade civil, em escala transnacional e local; e redefinirem suas identidades num diálogo difícil com a cultura e a esfera pública brasileiras (BURITY; ANDRADE (Orgs.), 2008, p. 96).

Segundo os modelos republicanos, a religião e a política são elementos complexos e indeterminados no que se refere a reconstituições historiográficas. Mesmo diante disto, é possível para qualquer observador que seja bem informado, perceber o posicionamento dos evangélicos quanto ao aspecto político-ideológico.

A aproximação dos neopentecostais do campo político foi precedida tanto pela criação de novas representações ideológicas, como por um descontentamento com as maneiras tradicionais dos evangélicos fazerem política no Brasil. Durante muito tempo, líderes pentecostais consideravam suja a atividade política, denunciavam os “candidatos de porta de templo”, que apareciam apenas em épocas de eleições e que, depois de eleitos, se fechavam aos interesses das bases que os elegeram, ou simplesmente fingiam atende-las dando nome de seus mortos ilustres a escolas, praças e ruas. A essa percepção crítica dos políticos evangélicos acrescentou-se a crítica moralista dos neopentecostais, quase todos eles oriundos das camadas mais baixas das classes médias. Assim, os neopentecostais, portando um discurso mais moralista desenvolveram uma repulsa aos políticos evangélicos tradicionais, acusados por eles de transigirem em seus princípios morais, para defender interesses próprios ou de grupos “incrédulos” (CAMPOS, 1999, p. 453).

Mas o fator decisivo para essa participação mais ativa de líderes religiosos na política do país foi o crescimento demográfico dos evangélicos. Veremos esse crescimento no próximo artigo.

REFERÊNCIAS

 BURITY, Joanildo; ANDRADE, Péricles (Orgs). Religião e Cidadania. São Cristóvão: Editora UFS; Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2011.

CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, Templo e Mercado. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

FIGUEREDO FILHO, Valdemar. Entre o palanque e o púlpito: mídia, religião e política. São Paulo. São Paulo: Annablume, 2005.

REGO, José Marcio; MARQUES, Rosa Maria. Economia Brasileira no Processo de substituição de importação. “A grande Depressão”. 2. ed. Saraiva. São Paulo. 2006.

PIERUCCI, Antônio Flávio; PRANDI, Reginaldo. A realidade social das religiões no Brasil: religião, sociedade e política. São Paulo: Hucitec, 1996.

SKIDMORE, Thomas. Uma História do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

FIGUEREDO FILHO, Valdemar. Entre o palanque e o púlpito: mídia, religião e política. São Paulo. São Paulo: Annablume, 2005.

ORO, Ivo Pedro. A política da Igreja Universal e seus reflexos nos campos religioso e político brasileiros. XXVI Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu-MG, 22 a 26 de outubro de 2002.

*Ricardo Jorge Silveira Gomes é professor, historiador, mestre, doutorando em Ciências das Religiões e membro da Academia Cabense de Letras

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