Artigo

Nossos Demônios Venceram 

Leandro Fraga*

Em 19.03.2025

1- Introdução

Ouvindo uma entrevista do filósofo brasileiro Leandro Karnal em um podcast, fiquei feliz por ele ter me lembrado de versos do poeta chileno Pablo Neruda dos quais gosto muito (dos versos, e do poeta). A conversa era sobre o poder da parentalidade como referência de limites, da capacidade de diferenciar entre o bem e o mal – e de escolher fazer o bem, porque, de uma forma bastante simplificada, “meus pais vão ficar desapontados se eu não agir corretamente”.

Corta para a Burlada Cross Country, uma corrida disputada na Espanha. O queniano Abel Mutai lidera com folga a edição de janeiro de 2013 da disputa, mas, a poucos metros da linha de chegada, se perde em relação a que caminho seguir, e para de correr, achando que terminou a prova. Seu competidor mais próximo, o espanhol Iván Fernández, percebe o colega desnorteado e literalmente o empurra no rumo certo até a vitória. A cena inusitada chamou a atenção da imprensa: Mutai, questionado sobre a perda de rumo; e Fernández, sobre ter auxiliado o colega a vencer. Este responde simplesmente: “porque era ele quem ia ganhar “.

Um jornalista volta a insistir: “Mas você poderia ter vencido!” Ivan olhou-o com alguma surpresa e respondeu: “Mas qual seria o mérito da minha vitória? Qual seria a honra dessa medalha? O que a minha mãe pensaria disso?” Mamãe Fernández deve ter vibrado.

Voltando a Neruda, ele fala do espanhol Hernán Cortés, responsável por pulverizar o império Asteca: “Cortés no tiene pueblo, es rayo frío, Corazón muerto en la armadura”. O “no tiene pueblo” é uma referência à falta de limites, considerando que a família e sua comunidade de entorno trazem esses limites. Se é verdade o provérbio africano que avisa “it takes a village to raise a child”, o sanguinário Cortés, desde muito jovem obstinado na busca por conquistas, perdeu pelos caminhos as suas balizas, e virou, assim, um homem capaz de tudo.

Uma versão dos riscos da ausência desses limites está contida de forma radical na frase de Ivan Karamazov, que Dostoiévski fez apontar num maravilhoso diálogo que: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Cortés não teria, assim, nem família, ni pueblo, nem Deus. Ao contrário do corredor Iván Fernández.

Esse conjunto de limites, familiares e sociais, prevaleceu vigente até tempos muito recentes. Havia vários códigos a nos indicar o caminho do bem, desde os já citados preceitos religiosos até leis escritas, passando pelos princípios cultural e socialmente mais caros, longamente purificados pelo amadurecimento da convivência coletiva, de modo a que a barbárie não tomasse conta. Esses princípios foram sendo destilados com o tempo e a moral de cada época e lugar, mas apontavam de forma razoavelmente linear para um caminho de virtude em alguns elementos mínimos. Como exemplo, há inegáveis coincidências entre o que prescrevem as religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo, pela ordem cronológica de consolidação) que representam pouco mais de 50% da população da terra. Mesmo nos casos de crenças mais filosóficas do que religiosas, como o budismo e o xintoísmo, há inúmeras convergências. E, o mais importante, praticamente nenhum conflito relevante nesses princípios a seguir (desnecessário dizer aqui quanta barbaridade se cometeu – e se comete – através da história em nome de um Deus, mas vamos considerar o saldo potencialmente positivo nos preceitos).

Assim, foram deixando de ser socialmente aceitos determinados comportamentos e crenças; se não por receio do que pensariam seus pais, su pueblo, your village, seu Deus, mas porque isso implicava também um julgamento social relativamente uniforme em pontos quase pacíficos.

Relativamente uniforme e pontos quase pacíficos; a discussão pode ser infinita aqui.

2- Relativamente uniforme; e pontos quase pacíficos.

Vamos examinar um pouco mais esses balizamentos convergentes:

  • O filosofo inglês John Nicholas Gray, defende, no ótimo O Silêncio dos Animais, que a evolução na ciência e na tecnologia é acumulativa, e infinita; depois que se inventou a roda (o exemplo é meu, não dele), ela foi sendo usada para cada vez mais fins, foi aperfeiçoada, sofisticada e assim seguirá sendo.

Já na nossa vida política, moral e de valores não é assim, segundo Gray. Uma ideia que é avaliada como ruim, que foi superada pelos fatos, pareceria condenada a morrer no passado; mas ela pode ressurgir, insidiosa, e de repente se popularizar de novo, reabilitada por sentimentos renovados em relação a ela diante de novas circunstâncias.

  • Já o psicólogo e linguista canadense Steven Pinker escreve n’Os Bons Anjos da Nossa Natureza que a violência no mundo declinou ao longo da história, em todas as formas, desde a redução das guerras até o melhor tratamento das crianças. Entre os fatores que possibilitaram isso estaria o aumento da orientação racional para resolver problemas.

Ele ressalva que a continuação desse declínio não é inexorável, e depende de forças que aproveitem nossas melhores motivações, como empatia e autocontrole.

Embora pareçam discordantes na essência, as ideias de Gray e Pinker me parecem convergir para um ponto essencial no que se quer tratar aqui: o passado não está ainda definido no território das ideias, embora possa parecer superado. As más ideias não morrem definitivamente; é quase um eterno retorno, como apontou Friedrich Nietzsche.

Parece haver, historicamente, um rumo de mais respeito, de melhor governança, de condenação a más práticas, e muitos outros aspectos positivos, como diria Pinker. Mas, em obra que ele mesmo cita, o sociólogo Norbert Elias escreveu O Processo Civilizatório já destacando tudo isso com riqueza de detalhes. Ele era alemão, e publicou seu livro em… 1939. Os fatos seguintes não corroboraram suas palavras? Olhando para o curto prazo, evidentemente não. No prazo mais longo, podemos talvez ter uma leitura mais descomprometida pelo calor dos acontecimentos. Ou não.

(O problema acaba sempre sendo das interpretações. Mas vamos ver se os parágrafos seguintes nos ajudam)

3- A Evolução

Como se poderia afirmar se evoluímos ou não? A discussão é desafiadoramente ampla, mas o parâmetro macro que se vai escolher tomar aqui é o percentual da população da terra vivendo sob regime democrático.

A democracia tem inúmeros defeitos factuais e potenciais. Platão não tinha preferência por ela, em função das graves possíveis fragilidades (por isso, e não por acaso, chama seu livro de A República). Mas, vista de hoje, e com a devida vênia de Platão, é o regime que melhor atende aos eleitores – quase sempre equivalentes, modernamente, à população adulta total dos países.

Por que a democracia como parâmetro – e não outros indicadores, como violência, por exemplo? Porque a democracia oferece um elemento coletivo, e internacionalmente comparável, com significados indiretos comuns como prevalência da lei, respeito às minorias, liberdades individuais e muitos outros.

Mas, e isso é fundamental, tudo adaptado à cultura e aos costumes de cada lugar, embora sempre apontando para a prevalência do bem coletivo sobre o desejo pessoal. Cada democracia é uma, cada país plenamente democrático tem seus ritos particulares, embora todos tragam os elementos mínimos de que tratamos aqui.

A liberdade individual por exemplo, tem definitivamente mais peso em sociedades que são mais propensas ao risco, e menos peso naquelas em que o valor que prevalece é o da segurança. Assim, a democracia cuida de traduzir, em cada sociedade e de acordo com suas preferências, qual é o mínimo múltiplo comum para aquela população, e permite ainda renovar e ajustar essa visão a cada novo processo eleitoral. Desse mecanismo também virão as leis escritas, que, potencialmente, refletirão igualmente os usos e costumes coletivos mais caros àquele coletivo social. A democracia não apenas é regulada pelos chamados pesos e contrapesos, mas tem mecanismos para permitir que esses mesmo pesos e contrapesos sejam permanentemente aperfeiçoados.

Pois bem, atingimos no início dos anos 2000 o pico percentual de cidadãos no mundo vivendo em regimes democráticos: pouco mais de 50%. Não é extraordinário, há que se reconhecer, mas é o melhor que conseguimos fazer nos 300.000 anos em que existimos como espécie terráquea.

Do início dos anos 2000 para cá, no entanto, a queda vem se mostrando um fato preocupante, com o crescimento notável de novos regimes que, embora preservem o rito eleitoral, o fazem apenas para estabelecer um meio formal de dar poder a um governo que não cumprirá o roteiro mínimo do processo democrático: quando disputamos a eleição podemos ter lados; mas quando vencemos, governamos para todos, e essa é a essência da democracia – fazer valer o desejo da maioria sem discriminar nem muito menos oprimir as minorias.

Mas por que essa mudança está acontecendo?

4- O Encontro dos Demônios

Em 2007 temos o lançamento dos primeiros smartfones, que abrem espaço para a existência das redes sociais que passaram a nos acompanhar. Ou bem mais do que acompanhar.

Sim, usávamos o Orkut desde 2004. Mas essa era uma rede social para computadores, sem portabilidade, e fez extraordinário sucesso mesmo só no Brasil e na Índia (os dois países respondiam por cerca de 80% ou mais dos usuários; e o Brasil era tão relevante que a sede mundial da rede foi transferida para o centro de pesquisa do Google em Belo Horizonte).

A partir do crescimento de outras redes (FB, X, Instagram, Telegram, WhatsApp etc.), e da universalização acelerada dos smartphones, passamos a nos conectar cada vez mais por elas e eles. Mas não apenas nos conectar; a confiar cada vez mais no que recebemos através delas, porque vem de fontes conhecidas, com quem temos afinidades e afetos compartilhados. Vamos elaborar mais isso.

A primeira vez que ficou público o quanto a influência das redes sociais pode ser impactante no mau sentido foi no caso da Cambridge Analytica, que, parece pacificado hoje, manipulou o referendo britânico sobre o BREXIT em 2016, dando vitória para a votação pela saída, depois de uma intensa campanha de desinformação. Há razoável consenso hoje de que o passo foi um erro grave, mas, mesmo antes do processo ser implementado, já havia grande suspeita de que a saída seria um fracasso. Mas, em respeito ao resultado do referendo, precisava ser feito. A eleição (ou o referendo) usada como arma de destruição, e não de construção social; é disso que se trata.

De lá para cá, foram inúmeras votações no mundo em que as redes sociais tiveram papel relevante em definir o vencedor através da manipulação do público.

Mas segue a questão: e os demônios?

Pinker fala deles no seu Os Bons Anjos da Nossa Natureza. Seriam nossos demônios individuais:

  • Violência Predatória ou Prática: violência como um meio prático para um fim;
  • Domínio: o desejo de autoridade, prestígio, glória e poder. Esse desejo de dominância pode ocorrer tanto dentro de indivíduos como ser compartilhado por grupos raciais, políticos, étnicos, religiosos ou nacionais;
  • Vingança: o desejo moralista de retribuição, punição e justiça;
  • Sadismo: a imposição deliberada de dor sem propósito, mas para desfrutar do sofrimento de uma pessoa;
  • Ideologia: um sistema de crenças compartilhado, geralmente envolvendo uma visão utópica comum, que justificaria a violência ilimitada em busca do bem ilimitado.

Alguns desses parecem notavelmente familiares, populares e influentes nas polarizações que presenciamos hoje; e vêm, muitas vezes, combinados.

Mas os demônios internos não foram sempre objeto de segredo? Como confessar a Mamãe Fernández que nossos pensamentos não passam pela peneira social das virtudes? E a nosso pueblo? E à nossa village? E a nosso Deus?

Sabemos agora que eles se mostraram, um enorme contingente de seres humanos, secretamente, tinha seus incômodos inconfessáveis em relação a alguns temas crescentemente trazidos pela democracia. A evolução coletiva não logrou afetar positivamente em todos nós, não conseguiu iluminar pontos tão obscuros. Igualdade, respeito às diferenças, às individualidades, há muitos preceitos novos e crescentes que vieram junto com a ampliação da democracia, e pela globalização. O incômodo com eles cresce, são os tais sentimentos inconfessáveis que nos atormentam. Estão ali à espreita, como lembra Gray, ainda que individualmente, como diz Pinker.

De repente, numa rede social, você descobre que não é só você quem tem aquelas ideias que poderiam trazer enorme desconforto se manifestadas nos grupos sociais em que genericamente vivemos, o trabalho, a escola, o clube social, a festinha no fim de semana. Eram esses sentimentos inéditos ou absolutamente pessoais? Até ali, tinha só o primo que fazia eco com nossas ideias, embora visto como um desajustado – mesmo que a tia também pensasse o mesmo, mas era porque ela é de outra geração. Contudo, na rede social não era um, dois, nem centenas; não raramente eram milhares (ou milhões) de pessoas que pensavam exatamente como nós.

O que nos uniu com esse grupo não foram as qualidades comuns, mas os defeitos sociais ou pessoais compartilhados. Gente que pensa como nós, por mais que comentar aquele assunto no almoço de domingo fosse arriscado.

Mas o almoço de domingo agora tem milhares de participantes que não apenas comungam conosco das mesmas ideias, mas que as propagam com a confiança de quem está acolhido por multidões de colegas que pensam da mesma forma. Demônio encontrando demônio.

O fator de ligação não foi alguma qualidade rara ou nobre; não foi o comportamento socialmente aplaudido; não foi o traço de união, o mínimo múltiplo comum que por tanto tempo construiu, com dificuldade, o caminho de cada democracia.

Quem fornece a solda é o mesmo defeito, a mesma visão estranha, a mesma crença cientificamente sem respaldo, o mesmo preconceito desnudado, a mesma má ideia ressuscitada. É gente que pensa torto como nós. É alguém com quem eu posso compartilhar meus demônios sem receio, porque eles são comuns. É um grupo que não apenas me aceita com meus defeitos, mas me valoriza exatamente por eles.

Pais, família, pueblo, village, Deus, nada é maior do que o conforto de ter encontrado espelho para nossos pensamentos sombrios; afinal, somos gente que passou a vida negando a si mesmo a possibilidade de liberar e promover os demônios mais queridos, e agora esse desabafo é possível. Juntos, gritamos slogans que não precisam fazer sentido algum. Podemos partilhar atrocidades, falas ilógicas ou irracionais, porque o julgamento que interessa é o feito por nós mesmos.

E a polarização afetiva – para usar um termo cada vez mais presente nas análises sociológicas e políticas sobre esses assuntos – é mais forte que a polarização ideológica, que precisava de alguma racionalidade para sobreviver.

Mesmo nos momentos mais agudos dos movimentos radicais era necessário encontrar algum argumento que servisse de salvaguarda para os sentimentos eventualmente obscuros (teorias absurdas, fantasias, crenças pseudocientíficas ou delírios místicos fizeram parte do arcabouço de argumentos para historicamente justificar atrocidades).

Agora não há mais por que se preocupar com isso. Ao encontrar os grupos que dão match com nossas mais reprováveis crenças, ficamos em êxtase, porque nós somos muitos, e cada um nesse grupo acolhe naturalmente os demônios alheios (que são também os de cada um); e, mais importante, ninguém precisa mais de falsas desculpas científicas, religiosas, antropológicas ou racionais para justificar nada. Porque nós nos referenciamos em nós mesmos, nossa opinião sem lastro vale tanto quanto qualquer outra, temos orgulho das nossas interpretações primitivas comuns ou das certezas que, imodestamente, trazemos conosco como respostas definitivas a qualquer pergunta, ainda que essas respostas não sejam suportadas por nada no mundo real, mas em nossa obscura história interior, e pelo florescimento dos nossos demônios e dos nossos codemoniandos.

A racionalidade e o conhecimento não venceram. O século XXI tornou-se o paraíso conectado dos demônios e seus encontros. E não parece haver anjos suficientes para contê-los.

*Leandro Fraga, PhD, é consultor e professor no Insper.

Imagem destaque: Web

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