A “chaga” do analfabetismo

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 20.07.2020

No seu livro intitulado Pedagogia da Indignação, Paulo Freire ensina: “Se a educação não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”.  A palavra chaga é um substantivo feminino que significa lesão aberta no corpo geralmente causada por ferimento… diz-se: tinha chagas no corpo, abertas por chicotes com pregos, em sentido figurado, aquilo que penaliza, pune, acarreta dor e sofrimento… segundo o Dicionário online de Português.

O país foi sacudido pelos noticiários da semana passada que estamparam as informações sobre o analfabetismo no Brasil, que ora registra 11,3 milhões de analfabetos, uma taxa de 6,8% de pessoas acima dos 15 anos que não sabem ler ou escrever. No período de um século, a partir de 1900, o país reduziu o analfabetismo a passos de tartaruga, como fala o dito popular. No final do século XIX as estatísticas registravam 65,3% de analfabetos, ou seja, passamos mais de um século para atingir a meta estabelecida atualmente pelo Plano Nacional de Educação para 2015, que era baixar o índice para 6,5%, a fim de erradicar o analfabetismo até 2024.

Além disso, ainda convivemos com mais de 30 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos consideradas analfabetos funcionais, segundo a ONG Ação Educativa, o que quer dizer que frequentaram a escola mas não conseguem escrever um bilhete, um recado para alguém ou compreender um pequeno texto escrito e de simples raciocínio. Ou não desenvolvem habilidades para fazer operações matemáticas.

Passando uma vista d’olhos nos dados apresentados podemos observar que o Rio de Janeiro, a antiga capital federal, apresenta o menor índice, 2,4 do país, sendo que o maior está em Alagoas, 17,2, encabeçando os maiores indicadores concentrados nos estados do Nordeste: Piauí 16,6; Maranhão 16,3; Paraíba 16,1; Sergipe 13,9; Ceará 13,3; Rio Grande do Norte 12,9; Bahia 12,7 e Pernambuco 11,9.

A Região Nordeste apresentou a maior taxa de analfabetismo, 13,9%. Isto representa uma taxa aproximadamente quatro vezes maior do que as taxas estimadas para as Regiões Sudeste e Sul (ambas com 3,3%). Na Região Norte essa taxa foi 7,6% e no Centro-Oeste, 4,9%.

A taxa de analfabetismo para os homens de 15 anos ou mais de idade foi 6,9% e para as mulheres, 6,3%. Para as pessoas pretas ou pardas (8,9%), a taxa de analfabetismo foi mais que o dobro da observada entre as pessoas brancas (3,6%). IBGE/PNAD.

Analfabetismo ainda é um problema mundial e não afeta apenas a nação brasileira. Tem se transformado num sério problema para os países pobres com fartos indicadores de desigualdade. Cinquenta e três anos após a Organização das Nações Unidas (ONU) instituir o dia Internacional da Alfabetização, 750 milhões de pessoas ainda não sabem ler e escrever, e de cada três pessoas que não sabem ler, duas são mulheres. Do total, de cor branca 3,9 e 9,1 pretos e pardos. No entanto muitos países se apressaram em resolver essa questão por motivos que vão desde a garantia de direitos até a melhoria do desenvolvimento, da produtividade do capital.

A luta contra o analfabetismo, no entanto, esteve presente nas grandes lutas de libertação pelo mundo. No Brasil, época do império só era permitido o voto do analfabeto se o mesmo possuísse bens e títulos. Quando aconteceu a libertação dos escravos pela lei áurea assinada pela princesa Isabel, em 1888, às vésperas da proclamação da República, os donos de escravos foram indenizados e os escravos sem nenhum direito, sobretudo sem saber ler e escrever, foram jogados num país pré-industrial que demandaria mão de obra letrada e qualificada para produzir e sobreviver.

Atualmente, através da emenda  à Constituição de 1988, os analfabetos tiveram o direito de votar. Já se vão mais de 30 anos e não conseguimos acabar com a “chaga” do analfabetismo no país.

Quando analisamos os dados mínimos apresentados, observamos que o mapa do analfabetismo no Brasil se conjuga com o mapa da pobreza. No Nordeste brasileiro se concentram as pessoas analfabetas que devem ser as mesmas que vivem em situação de vulnerabilidade, que não têm moradia, água potável e esgoto disponíveis; que enfrentam o desemprego e vivem da renda de ocupações indefinidas e instáveis; que não conseguem atendimento de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS); que têm os filhos frequentando escolas sem estrutura e de baixo nível aprendizagem.

O analfabetismo atinge principalmente a população preta e parda, como caracteriza a PNAD/IBGE, sobretudo as mulheres, sendo que essas pessoas na condição de vulnerabilidade em que vivem sofrem de outros problemas sociais como a repressão policial, a violência doméstica e o preconceito racial, cabendo à grande maioria dessas mulheres a responsabilidade  sobre o provimento e condução da família, a educação dos filhos sem o apoio de políticas públicas, escolas em tempo integral, creches e áreas de lazer.

A nação brasileira não pode esperar que se passe mais um século para erradicar o analfabetismo e estancar a fábrica de analfabetos que tem origem na precariedade da nossa educação.

Temos literatura suficiente que apontam caminhos que devem ser percorridos para se atingir patamares superiores com relação à qualidade da educação e fechar de vez com a “chaga” do analfabetismo que produz injustiça, porque impede a garantia de outros direitos de cidadania, vilipendia a sociedade, impede o crescimento econômico e afasta o país das nações mais democráticas.

Pessoas analfabetas, sobretudo nesse mundo onde a inteligência artificial vai galgando espaços aceleradamente, estão distanciadas, apartadas de tudo, do conhecimento, do emprego, da participação mais intensa no que a sociedade pode propiciar, do acompanhamento familiar e da participação política nos destinos do país.

A nação brasileira deve exigir que as políticas públicas sejam pensadas e executadas de forma interdisciplinar para corrigir as desigualdades tão profundas, como as que são reveladas pelo Mapa do Analfabetismo no Brasil.

A proporção de analfabetos funcionais no Brasil totaliza 38 milhões de pessoas. O volume dessa população é maior que quase todos os estados brasileiros, só perde para o total de residentes no Estado de São Paulo (41,2 milhões), segundo dados da Agencia Nacional.

Atentemos para o alerta de Paulo Freire: “Desrespeitando os fracos, enganando os incautos, ofendendo a vida, explorando os outros, discriminando o índio, o negro, a mulher, não estarei ajudando meus filhos a ser sérios, justos e amorosos da vida e dos outros. ”

Devemos nos perguntar diariamente quem conduzirá essa Nação Brasileira tão grande e próspera para um projeto de sociedade que corrija as injustiças históricas que geram desigualdades? As nossas crianças não são prioridade absoluta, embora esteja escrito na lei; os povos indígenas não são reconhecidos como sendo nossos ancestrais; os quilombolas não são reconhecidos como parte da nossa história e da nossa vida; mulheres são assassinadas diariamente, resultado de uma sociedade machista que sequer se indigna com o feminicídio.

O analfabetismo funcional ou estrutural tem muito a ver com tudo isso.

Mas aí já é outra história para viver e contar.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: armazemdetexto.blogspot.com