Tecnologia, alienação e alucinação: isso é muito Black Mirror ou Belchior tinha razão?

Por

Mário Gouveia Júnior*

Em 24.07.2020

Sobre os ombros de gigantes como Platão, Milton Santos, Le Goff e Belchior, serão abordadas as tensas, e, por vezes, perigosas relações entre tecnologia e alienações. Nesse contexto, quando se percebem mais permanências do que rupturas no tocante à existência de múltiplos interesses de determinados grupos no controle de mentes e corpos das pessoas por meio da tecnologia, é que se pode questionar se o universo obscuro de tramas de ficção científica, como o aclamado Black Mirror, estão assim tão afastados de nossa realidade como pensávamos.

“Como o que pesa no Norte, pela Lei da Gravidade, disso Newton já sabia, cai no Sul”, o mote para a aproximação entre Filosofia e ficção científica veio da experiência recente de ministração da disciplina Gestão da Tecnologia e da Inovação para uma turma de graduação em Administração de uma instituição de ensino superior. Para este exercício, o conjunto de conteúdos foi dividido de maneira que, no primeiro bimestre, tivéssemos leituras, reflexões e debates sobre como o uso de plataformas digitais pode conceder melhores experiências no tocante à oferta de produtos e serviços. Vimos também como um gestor proativo deve se utilizar da velocidade com que se propagam informações e comunicações para um tomada de decisão mais adequada às necessidades de sua organização.

No segundo bimestre, já enfrentando a condição de isolamento social, em virtude da pandemia, e realizando, por conseguinte, aulas remotas, apresentamos a proposta de refletir sobre o outro lado da moeda; os usos e abusos da inovação e possíveis envenenamentos tecnológicos, que poderiam contribuir para a alienação dos sujeitos.

Não há nada mais autêntico do que o desejo dos jovens pelo novo; sobretudo quando se vive uma época em que as leis e as normas sociais já não se adequam aos anseios das pessoas. Naturalmente somos seres do eterno devir, como dissera Heráclito, e, seja como sujeitos seja como sociedades, todos aqueles que vivem em grandes cidades não só estão acostumados com as mudanças como as demandam com certa ansiedade.

Em 1976 o Brasil vivenciava a chamada Era de Chumbo; a Dituadura Civil-Militar, que se estabelecera por meio de um golpe inconstitucional, doze anos antes, utilizava-se de um potente aparato de vigilância e punição de modo a calar as oposições e celebrar uma duvidosa parceria com os estadunidenses, cujos frutos mais celebrados era o não menos duvidoso “milagre brasileiro”.

É exatamente neste ano que vem a público o lendário álbum “Alucinação”, de Belchior; considerado por muitos como um dos discos mais importantes da música brasileira daquela década, justamente por conta de suas canções exprimirem a urgência do jovem em libertar-se do estado de violência e voltar a sonhar, desejando uma mudança de paradigma.

Não à toa, em sua primeira faixa, “Apenas um rapaz latino-americano”, o cantor e compositor cearense, chega, inclusive, a chamar Caetano Veloso de “antigo compositor baiano”; o que revela, com certa ousadia, a sua intenção de virar a página do Tropicalismo e demandar novos ares, não apenas para a música brasileira, mas também para o seu país.

Apesar de se escusar, cantando que: “sons, palavras, são navalhas, e eu não posso cantar como convém sem querer ferir ninguém”, o autor de “Velha Roupa Colorida”, “Como Nossos Pais”, “Sujeito de Sorte” e “Como o Diabo Gosta”, segue, nessas outras canções, dizendo-se encantado com uma nova invenção, e que só quem ama o passado é que não vê que o novo sempre vem, despertando em todos nós a vontade/necessidade de rejuvenescer, de não morrer este ano, mobilizar o povo, que, por meio de seu bendito fruto, transformaria o velho no novo.

Diante deste cenário, advém o questionamento: “o novo sempre vem” é constatação de esperança? Depende do contexto, da época vivida, afinal, a quem interessará este novo? O que ele representará efetivamente na vida das pessoas? Mais uma vez, o exercício filosófico nos leva à percepção da existência da dualidade. Ibeji, lhes ouço e lhes vejo!

Em “A Invenção da Escrita”, Platão nos apresenta um diálogo entre Thoth, o deus egípcio inventor da escrita, e o rei Tamuz. A apresentação daquela tecnologia, que seria um remédio para os esquecimentos dos homens, preocupou o soberano; e se todos confiassem apenas na tecnologia e se esquecessem de usar as próprias memórias e pensamentos? O excesso de remédio se transformaria em veneno; um envenenamento tecnológico.

Estaríamos nós, em nosso tempo atual, diante de um dilema semelhante ao do rei Tamuz?

Quando se fala nas benesses da tecnologia desse tempo atual, facilmente pode-se considerar que estamos informados sobre os acontecimentos locais e globais, em tempo real; temos incontáveis vidas salvas por meio do compartilhamento de descobertas científicas, procedimentos e iniciativas profiláticas; aproximam-se distâncias, propiciando intercâmbio de culturas; move-se a economia, gerando renda para as pessoas.

“Mas o dinheiro é cruel, e um vento forte levou os amigos para longe das conversas, dos cafés e dos abrigos, e nossa esperança não aconteceu”, diz Belchior, em “Não Leve Flores”. Em estreito diálogo com essa canção, Milton Santos (2000) considera a existência do lado perverso do vil metal. Essa outra face, é identificada por nós, na contemporaneidade, pelo excesso de informações e fake news, cuja força se amplia com uma sociedade subletrada, ao ponto de eleger representantes políticos inaptos, e, por conseguinte, levar um país ao caos. Outros pontos relevantes é que os avanços tecnológicos e científicos nem sempre chegam a todos, da mesma forma que o intercâmbio de culturas nem sempre é equitativo, uma vez que o centro se impõe às periferias; e que o setor operacional sempre esteve exposto às relações perversas de capital, como a uberização do trabalho, que merece um artigo dedicado a ela, por conta de sua natureza complexa.

De volta aos envenenamentos tecnológicos, convencionamos chamá-los de alienação, fenômeno interessante, que se manifesta de maneiras diferentes (por socialização; por imposição; ou por negociação). No entanto, antes de prosseguirmos, é fundamental considerar que, ao contrário do que o senso comum considera, alienado não é o sujeito louco, desequilibrado ou com algum déficit de inteligência. Alienado deriva do termo “alienus”, que significa “alheio”, ou seja, alguém que não está se relacionando adequadamente com alguma situação ou grupo de pessoas. Alienado, então, é quem se afasta de processos decisórios ou críticos acerca da realidade na qual está inserido.

Cientes de que socialização é sinônimo de aprendizagem, a Alienação por Socialização se configura quando os sujeitos, por meio dos processos de aprendizagem, se adequam às normas de determinada sociedade. Essa socialização é operada pelas instituições sociais: a Família; a Escola; o Trabalho; a Igreja. Ao cidadão, cabe aprender as leis e respeitá-las, sem maiores espaços para críticas ou contestações.

Quando alguém é afastado compulsoriamente dos processos de expressão ou de opiniões quaisquer, geralmente, em contextos políticos de ausência de direitos civis, como em ditaduras, por exemplo, nos deparamos com a Alienação por Imposição. Mas, se alguém ou algum grupo negocia vantagens em troca de não se posicionar, de fazer vista grossa ou tolerar determinado comportamento, tem-se a Alienação por Negociação. No âmbito da justiça e da política essa prática é muito observada desde tempos imemoriais, mas, infortunadamente, também na atualidade; “Dois Policiais, cumprindo o seu duro dever, e defendendo o seu amor, e nossa vida”, será?

Na trilogia cinematográfica “Matrix”, vivemos em um futuro distópico no qual os seres humanos são criados e mantidos em estufas por máquinas (o calor e a atividade elétrica dos corpos humanos são usados como fontes de energia). Tudo o que entendemos como realidade, na verdade é um conjunto de simulações, como programas de computador; Sair desse “mundo dos sonhos” implica consequências dolorosas. Nesse sentido, é dada a oportunidade da escolha a todos os humanos que se apercebem falhas na Matrix. A pílula vermelha revela a realidade, desconhecida por todos; a pílula azul significa seguir a programação (alienar-se no contexto da socialização, tendo em vista que já se acostumou à realidade projetada). Esse dilema entre as pílulas é associado à mitologia da caverna platônica.

“A ignorância é uma delícia”, e muitos daqueles que saíram da caverna, tendo a oportunidade, iriam preferir voltar à ela, isto é, à alienação.

Outros tantos, podem se valer do discurso de que é melhor não conhecer a realidade/verdade, posto que suas consequências, a libertação (“todo aquele que prova do fruto do conhecimento é expulso de algum paraíso”, nos diria a psicanalista Melanie Klein) não seria adequada para a mente de qualquer pessoa.

Na verdade, o que essa suposta proteção, escondida no velho adágio de que “nós pensamos por vocês”, de velhas raposas políticas, que governaram, e ainda governam, este país, pode revelar é que controlar a história de uma sociedade, editando verdades, filtrando memórias e realizando apagamentos é tudo o que desejam os senhores da memória e do esquecimento. Como ensina o historiador francês, Jacques Le Goff: “Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva”.

“Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva”.

Jacques Le Goff

E quando a tecnologia se encontra com a alienação e gera alucinações, “eu pergunto ao passarinho, black bird/assum preto, o que se faz?”

O universo da aclamada série de TV Black Mirror foi além da pergunta e materializou em streaming uma série de possibilidades; são tramas de ficção científica à medida que as realidades apresentadas ainda não se configuram em nosso dia adia, mas, em certos casos, ninguém duvida que não venham a acontecer muito em breve. Para o fôlego deste trabalho, basta que se enumerem três:

  • “Nosedive” / “Queda Livre”: uma sociedade em que todas as leis e normas sociais, e mesmo o status social de cada indivíduo, são reforçados por meio de um aplicativo para smartphone que promove curtidas, ou descurtidas, com base nas ações cotidianas dos outros. Nesse sentido, vigilância e punição são operados pelos próprios sujeitos, que acabam por perder a espontaneidade das ações, do contrário, sofrerá com a “cultura do cancelamento”. A cultura do cancelamento envolve a interrupção de apoio a personalidade ou empresa em virtude de alguma postura considerada inaceitável. Essa trama revela um controle absoluto das pessoas; feito muito maior do que qualquer panóptico foucaultiano;
  • “Hated in the Nation” / “Odiados pela Nação”: imagine se uma tecnologia pensada para polinizar flores por meio de insetos-robôs inadvertidamente começassem a punir com dores tão terríveis, que levassem pessoas que despertaram o ódio de muita gente nas redes sociais ao suicídio! Mais um episódio que aborda a cultura do cancelamento, desta vez, levada ao extremo. Coletivamente, ainda que sem saber, os chamados “haters” de alguma personalidade famosa ou mesmo anônimo, tornado famoso por algum ato cometido, flagrado pelas telas de smartphone e jogadas nas redes sociais, acabam sendo os responsáveis pela punição do fruto de seus desafetos. Diante da era das hashtags, “Vigiar e Punir”, de fato, precisa de um novo capítulo; foucaultianos, é com vocês!
  • “The entire history of you” / “Toda sua História”: o dom de poder gravar na memória qualquer evento vivido; adeus às câmeras! Tudo fica gravado em um potente HD implantado nos cérebros dos usuários do “Grão”. Rever momentos felizes é algo que qualquer um de nós desejaria, mas, ao mesmo tempo, tanta segurança para as nossas memórias, revela total ausência de liberdade, já que os órgãos de segurança podem requisitar que você mostre suas memórias para comprovar que não fizeram nada de errado como pegar um pacote antes de fazer uma viagem de avião, por exemplo. Bauman tinha razão, o dilema entre segurança e liberdade se faz presente, mas episódio se concentra em revelar que o maior dilema da literatura brasileira não resistiria a um “print” da realidade black mirror; afinal, Bentinho saberia de todas as ressacas contidas nos olhos de Capitu.

Por entre tecnologias, alienações e alucinações, este autor considera que todo remédio tem efeitos colaterais; como vimos, seus excessos podem até acarretar consequências terríveis. Cabe a nós usar de nossas liberdades com consciência e sem acreditar em milagres muito menos em messias. A maior cura que devemos buscar é a da ignorância, tratando de eliminar toda e qualquer patente sobre ela.

Que a nossa alucinação nos torne aptos a suportar o dia a dia, mas também a não esquecer de sonhar, de buscar o impossível. E que este “canto/conto torto, feito faca, corte a carne de vocês” para que esta ferida aberta jamais volte a se fechar, como uma mente que se abre à complexidade, jamais voltará à normalidade.

Referências

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

BELCHIOR. Alucinação. Rio de Janeiro: PolyGram/Phillips, 1976. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_jS3UNQbeZ4. Acesso em: 22 jul.2020.

FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

PLATÃO. Fedro. Lisboa: Edições 70. 1997.

BLACK Mirror. Criação: BROOKER, C. Reino Unido, 2011 – atual., streaming, color, son. Disponível em: <https://www.netflix.com> . Acesso em: 22 jul. 2020.

SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000.

 

*Mário Gouveia Júnior é professor acadêmico, mestre em Ciência da Informação. Escreve às sextas-feiras.

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