Ditadura dos manequins

Por

Jaques Cerqueira*

Em 26.07.2020

Carregar a barriga proeminente, típica dos idosos que se entregam à rotina da vida sedentária, não é coisa das melhores. Trata-se de um exercício cansativo, rotineiro e triste. Verdade! Em pé, a gente não consegue ver, sequer, se os sapatos estão devidamente engraxados, porque a barriga impede. Mas isso não é nada, comparado com a busca incessante por uma camisa que se ajuste à nossa forma física, digamos, arredondada. E foi justamente quando procurava por uma camisa bonita para ir à festa de aniversário de uma amiga que me deparei com a ditadura dos manequins.

A regra ditada por eles, dentro das vitrines, é dura. Muito dura. Ou a gente toma vergonha na cara e entra numa academia, em meio a um regime alimentar rigoroso, ou não tem como vestir aquela camisa ali, exibida orgulhosamente pelo manequim que se encontra de cara amarrada, olhando para mim no canto da vitrine. Com certo ar de arrogância.

Resolvi arriscar. Afinal, não posso me sentir intimidado por um manequim. Entrei na loja e perguntei à vendedora se aquela determinada camisa estaria disponível no modelo “lombada”. Ela estranhou. Nunca ouvira falar desse modelo. E aí apontei para minha barriga saliente. Ela caiu na risada, mas não teve jeito. Delicadamente, explicou que o corte da camisa era “slim”. Ou seja, para pessoas com a tão sonhada “barriga de tanquinho”. Desanimado, voltei a olhar direto na cara do manequim e – juro! – ele parecia estar sorrindo da minha decepção. E naquela pose de quem se sente vitorioso.

“Você está aí, todo sarado, bonitão, porque nunca soube o que é uma boa rabada, nas tardes de sábado, regada a uma cerveja estupidamente gelada e no meio de uma roda de amigos divertidos”.

Aí, não aguentei. Me postei diante da vitrine, olhei nos olhos daquele boneco pálido, sem graça e estático e disse com o dedo em riste: “Você está aí, todo sarado, bonitão, porque nunca soube o que é uma boa rabada, nas tardes de sábado, regada a uma cerveja estupidamente gelada e no meio de uma roda de amigos divertidos”. Uma mulher que ia passando na hora olhou pra mim, desconfiada, certamente achando que eu era doido. Então, desaforado como sou, não resisti e disse a ela na hora: “Sou doido, não, minha senhora!”. Calada, a mulher só fez apressar os passos pra longe de mim, certamente convicta da minha loucura. Não sabia ela que aquela era minha reação à ditadura dos manequins, nem eu tinha como explicar. Já bastava ver a vendedora da loja morrendo de rir da minha conversa.

Aliviado e recomposto depois do meu desabafo, saí dali direto para um bar no Mercado da Encruzilhada, disposto a traçar uma rabada com cerveja. Me senti, assim, devidamente vingado do manequim. E novamente de bem com a vida.

 *Jaques Cerqueira é jornalista e escritor. Escreve aos domingos.  

Foto: viuvisual.com.br