A Educação é o caminho
Mirtes Ccrdeiro*
Em 27.07.2020
O que pode acontecer com a população de um país que de repente se descobre ameaçada com a possibilidade de interdição dos processos educacionais de seus filhos matriculados em escolas públicas no país inteiro?
Foi o que quase aconteceu recentemente na discussão da renovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Às vésperas da votação na terça 21 pela Câmara dos Deputados da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 15/15, que torna permanente o Fundo de Desenvolvimento e Valorização dos Profissionais de Educação (Fundeb) e eleva a participação da União no financiamento da educação infantil e dos ensinos fundamental e médio, o Palácio do Planalto apresentou uma proposta que alterava pontos do projeto original e redirecionava a utilização dos recursos previstos no Fundo para um programa de renda mínima destinado às famílias com crianças em idade escolar. Mas, felizmente, a proposta do governo foi derrotada por força da mobilização da sociedade. O texto-base da proposta foi aprovado em segundo turno por 492 votos a 6, além de 1 abstenção. Mas lembremos que a organização institucional do Parlamento brasileiro é bicameral. A PEC agora vai para o Senado.
O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de valorização dos profissionais da educação é um conjunto de fundos contábeis formados por recursos da União dos estados e municípios para promover o financiamento da educação pública no que se refere ao ensino básico. O acesso aos recursos se dá através do censo escolar e pela definição do custo aluno, entre outros critérios.
Considerado essencial para o ensino público no país, o Fundeb deixa de existir no fim deste ano, conforme definido na lei que o criou.
Constituído por impostos estaduais municipais e federais, em 2019, os recursos do Fundeb, chegaram a R$ 166,6 bilhões. Os recursos federais são usados para complementar os fundos estaduais que não reúnem recursos suficientes para cobrir as despesas com base no custo aluno. Também em 2019 precisaram receber essa complementação, Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco e Piauí, quase todos localizados no Nordeste.
O Brasil conta com mais de 45 milhões de alunos matriculados nas redes de escolas públicas: 48% municipal; 32% estadual (estas custeadas pelo Fundeb) e 19% na particular.
Todos os países que se desenvolveram e romperam a barreira do analfabetismo encontraram na educação o caminho, não só para produzir riqueza ou manter a empregabilidade, mas sobretudo para o crescimento individual de cada cidadão.
Infelizmente a sociedade brasileira ainda não compreendeu que estamos longe de caminhar nessa direção. Não tem conhecimento dos mecanismos que movem essa política em nosso país, Não controla os recursos e se satisfaz com resultados pífios se comparados com as avaliações realizadas no plano internacional. Os governantes, na sua maioria, pouco se importam que os alunos cursando o terceiro ano do ensino fundamental ainda não consegam ler e escrever, e que os alunos do ensino médio tenham escassos conhecimentos sobre português, ciências e matemática,
Questões da dimensão do que ocorre com a renovação do Fundeb não se distanciam do que acontece em alguns países no mundo, com o surgimento de lideranças populistas e intolerantes com as verdades expressas por evidências científicas.
Observamos com perplexidade a ascendência do conservadorismo, intensa nostalgia do autoritarismo, o sonho com outra ditadura, o aprofundamento das teorias conspiratórias que vêm acompanhados de conceitos obscuros como a ”planicidade da terra, a defesa da família, da moral e dos bons costumes e a proteção de Deus”. Na verdade, quem tem a minha idade já vivenciou situação semelhante que nem deve ser lembrada, de tão nefasta memória.
O Ministério da Educação se apoiou nessa conjuntura e durante dois anos ignorou a responsabilidade que lhe é inerente, a de coordenar programas para melhoria da Educação no país. Retardou os investimentos, desprezou o diálogo com as universidades, com os dirigentes estaduais e municipais, com a comunidade escolar e se omitiu de fazer o debate junto ao Congresso Nacional para renovar a lei que criou o FUNDEB.
A Educação é fundamental para o desenvolvimento do país. No entanto, é urgente que se reconheça essa necessidade no seio da sociedade. Ter Educação pública de qualidade para todos no Brasil ainda está longe de ser unanimidade. Isto porque, não faz parte do entendimento de vários segmentos da sociedade, incluindo lideranças políticas e “sábias”, que a Educação é um direito fundamental, universal, subjetivo e inalienável do ser humano inclusive pelo caráter imprescindível à formação dos indivíduos no exercício de todos seus direitos.
Além de ser um direito social, a Educação é também uma condição para usufruto dos demais direitos, surgindo como elemento fundamental na garantia dos direitos de cidadania.
Para o educador Anísio Teixeira, que propagou suas ideias ainda no início do século passado, a Educação é o instrumento decisivo para a construção e o fortalecimento da democracia. Neste sentido, a Educação não se limita ao ensino apreendido nas escolas, mas abrange os vários tipos de cultura, as vivências na relação com as comunidades, com a família, e capacita todas as pessoas a construírem sociedades livres com equidade e justiça. Os processos educacionais no sentido dessa amplitude são o eixo construtor do ser humano enquanto pessoa, quando são ”iluminados os sentimentos de solidariedade, compreensão, tolerância e amizade na formação da sociedade.”
A Declaração Universal dos Direitos do Homem contempla a educação como um direito básico do ser humano, carecendo de apoio e proteção permanentes e efetivos por parte dos Estados. Este foi um primeiro documento relevante na busca pela universalização deste direito, assinado após a segunda Guerra Mundial, o que gerou vários acordos internacionais para a garantia da Educação para todos os povos, inclusive a erradicação do analfabetismo.
Há quase 100 anos, um Manifesto apresentava um diagnóstico simplificado da situação daquela conjuntura nacional: “Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e gravidade ao da Educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem disputar a primazia nos planos de reconstrução nacional. Pois, se a evolução orgânica do sistema cultural de um país depende de suas condições econômicas, é impossível desenvolver as forças econômicas ou de produção, sem o preparo intensivo das forças culturais e o desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa que são os fatores fundamentais do acréscimo de riqueza de uma sociedade.” (Manifesto dos Pioneiros da Educação1932)
E o mesmo documento já apresentava a necessidade de criação de um Fundo Especial para garantir os recursos necessários à execução da política educacional, sob coordenação do Ministério da Educação e execução pelos estados.
“Ao governo central, pelo Ministério da Educação, caberá vigiar sobre a obediência a esses princípios, fazendo executar as orientações e os rumos gerais da função educacional, estabelecidos na carta constitucional e em leis ordinárias, socorrendo onde haja deficiência de meios, facilitando o intercâmbio pedagógico e cultural dos Estados… a autonomia econômica não se poderá realizar, a não ser pela instituição de um “fundo especial ou escolar”, que, constituído de patrimônios, impostos e rendas próprias, seja administrado e aplicado exclusivamente no desenvolvimento da obra educacional, pelos próprios órgãos do ensino, incumbidos de sua direção.”(Manifesto dos Pioneiros da Educação 1932)
Ainda que se tenha passado quase um século, nos deparamos com situação parecida. A Educação continua sendo fundamental para que o gigante se mova nas ondas da economia, mas não consegue romper o conjunto de problemas que inviabilizam os bons resultados na aprendizagem, na formação universal e técnica qualificada para o trabalho, que têm raízes na má aplicação dos recursos, na desvalorização dos professores e na deficiência da gestão pública.
Os indicadores de aprendizagem no ranking da educação mundial elaborado pelo PISA/2019 colocam o Brasil na 65º posição entre os países pesquisados quando se refere às avaliações realizadas nas escolas públicas onde estão matriculados mais de 40 milhões de alunos. Os professores não são valorizados com piso salarial digno – o atual valor do piso salarial para 40 horas de trabalho de um professor licenciado em curso superior foi fixado esse ano em 2.886 reais (2020).
O Estado Brasileiro não conseguiu desde a redemocratização – a ditadura militar instaurada em 1964 perdurou até 1985 – desenvolver uma política educacional à luz da garantia dos direitos humanos, para todos, laica, com qualidade e garantidora do fortalecimento democrático
O desejo de privatização da Educação ressurge no imbróglio das ideias obscurantistas que rondam a sociedade e têm materialidade no racismo, na homofobia…
Feito o acordo de cavalheiros na Câmara Federal, o Projeto de Emenda Constitucional foi aprovado com alguns avanços, sem dúvida. A lei terá caráter de permanência para a política educacional, o governo federal fará maior aporte de recursos para complementação e maior percentual será aplicado aos salários dos professores.
No entanto, é tarefa da sociedade ser vigilante, tomar conta da situação. Pesquisas atualizadas realizadas pelo INSPER e Fundação Roberto Marinho indicam que o Brasil perde muito dinheiro porque não consegue educar seus jovens no tempo certo.
É preciso garantir os recursos, assegurar a permanência dos alunos na escola com estruturas adequadas ao processo de aprendizagem, zelar pela valorização dos professores e outros cuidados.
Agora, a PEC vai ao Senado.
Ainda falta muito para trilhar nessa caminhada.
*Mirtes Cordeiro é pedagoga.
Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.
Foto destaque: cn7.com.br