Diálogo possível entre gerações extremas

Por

Eugenio Jerônimo*

Em 01.08.2020

A bisneta pergunta:
— Biso, o que é esse tijolo que tu tá abrindo?

— É um dicionário, Maria Júlia. Di-ci-o-ná-ri -ô. A sua escola não ensina o que é um dicionário?

Maria Júlia, da experiência dos seus sete anos, não só sabia o que era um dicionário como tinha um ali à mão. Um não, dois. Um de português e outro de inglês. No celular, claro.

O bisavô disse que não era a mesma coisa. Os livros digitais não tinham graça. Nem existiam de verdade porque a gente nem podia pegar neles. Dentro dos livros de papel, como numa gaveta improvisada, a gente esquecia pedaços do nosso dia a dia. Pequenos bilhetes, números de telefone, notas fiscais, ingressos de espetáculos e, às vezes, até cédulas de dinheiro. Era um prazer bobo descobrir o passado arquivado nessas folhas. O bisavô chegou a fechar os olhos de nostalgia, defendendo a vantagem das brochuras sobre as publicações digitais. Pobre da neta, não teria memória física das vivências.

— É muito pesado, biso — disse, tentando erguer o dicionário — e a professora falou que era preciso derrubar milhares de árvores para fazer os livros de papel.

— Isso era antes. Agora podem ser feitas com madeira de reflorestamento — defendeu-se o bisavô.

— Biso, como consegue achar as palavras numa coisa tão grande?

— A sua escola não ensina ordem alfabética, Maria Júlia? Eu sempre disse a sua mãe que achava aquela escola muito modernosa.

A bisneta perguntou o que era ordem alfabética. Didático, o bisavô começou a explicar a organização dos dicionários e o modo prático de consulta. As palavras estavam distribuídas pela ordem das letras. Primeiro as começadas, com “a”, depois com “bê” e assim até o “zê”. Esse mesmo critério se observava no interior das palavras. “Coser” com “esse” vinha primeiro que “cozer” com “zê”. Além disso, as palavras-guia no alto das páginas orientavam a procura.

Com cara de quem não estava entendendo nada, a menininha desviou o olhar para a bisavó, que se aproximava. A bisavó propôs um desafio à bisneta e ao bisavô.

— Vou dizer uma palavra, e cada um procura no seu dicionário. Quem achar primeiro ganha. Um, dois, três… A palavra é: casa.

O bisavô, um rato de dicionários, abriu de primeira na letra “cê”. Mas, vitoriosa, a menina já exibia o verbete no seu celular, e lia:

— Do-mí-ci-lio… — assim mesmo, como proparoxítona.

O bisavô reconheceu a derrota, mas não se renderia às edições digitais. Além do mais, se não fossem os livros, a bisneta nem teria nascido. O namoro entre ele e a bisa tinha iniciado com o empréstimo recíproco de livros. Tudo começou quando ela devolveu um livro com uma foto dela dentro.

A neta não estava prestando muito atenção nesse pequeno enredo de amor.

— Bisa, diga outra palavra — queria continuar jogando.

*Eugenio Jerônimo é escritor. Autor de Aluga-se janela para suicidas (2009, contos); Gramática do chover no Sertão (poesia, 2016); O que eu disse e o que me disseram – a improvável vida de Geraldo Freire (2017, biografia – em coautoria). Escreve aos sábados.

Foto destaque: revistaapolice.com.br