Sou visto, logo existo 

Por

Vera Lúcia Braga de Moura*

Em 06.08.2020

Um novo tipo de articulação está ocorrendo entre as pessoas. Outro tipo de elaboração, interação está sendo configurada e formada há um tempo. A intimidade atual já não é mais a mesma de outros tempos. O psicanalista Chaim Samuel Katz, em entrevista ao jornal O Globo, afirma que vivemos numa “sociedade confessional”. Para esse pensador, a questão é saber que tipo de pessoas vai surgir a partir das mudanças de significados, como o da intimidade num tempo visibilizado pela mera exposição do já consagrado reality show existencial. Diante desse novo quadro social surgem várias atividades para o ser humano desempenhar que levam à criação de múltiplas identidades e geram uma perda/afastamento de si mesmo.

A inserção na sociedade confessional é aberta a todos e todas de forma atraente e sedutora. Porém, quem não se habilita a essa imersão precisa aprender com a versão atualizada do cogito de Descartes: “Sou visto, logo sou”, como mostra o sociólogo Zygmunt Bauman (2014, p.37) em sua obra “Cegueira Moral”. Dessa forma, quanto mais pessoas me veem, me visualizam, estabelecem conexão, mais EU SOU, mais eu existo. Assim, o paraíso dessa aparição do EU SOU, dessa visibilidade mais contundente, são as mídias digitais, as redes sociais. Por isso,precisa-se estar conectado o tempo todo para que não se perca um minuto de exposição.

O lema é interagir com os likes, em curtidas digitais, efêmeras, homogêneas, em detrimento de lampejos de presença, da outra pessoa, na busca incessante por curtidas digitais e aparecimentos virtuais.

Essa corrida para ser vista torna a pessoa um ser quase inumano, perdendo as suas aspirações, seus desejos, seus sonhos, suas memórias, seu pertencimento social, suas criticidades, seus gostos afetivos, sua sensibilidade em relação a si mesmo e aos outros seres humanos. O seu lugar se torna um não lugar. Não existe mais a necessidade de pertencimento, de singularidades, de memória afetiva, da relação com as outras pessoas, pois seduzidos pelos valores fluidos e voláteis da modernidade, esquecemos de nós mesmos, da nossa historicidade, dos valores humanos. A relação interpessoal dialógica dá lugar a um imenso vácuo em que quase nunca se estabelece uma interação, encontros, afetividades, sonhos coletivos, experiências conjuntas. O lema é interagir com os likes, em curtidas digitais, efêmeras, homogêneas, em detrimento de lampejos de presença, da outra pessoa, na busca incessante por curtidas digitais e aparecimentos virtuais. Situações rotineiras entre duas pessoas podem não encantar, todavia, as rotinas das massas digitais dotam-se de autossentidos e autoencantamentos, excluindo a necessidade de mais uma experiência humana interpessoal não digital.

É importante ressaltar que a capacidade crítica é uma habilidade que não se consegue subtrair da pessoa, embora muitas optem por direcionar essa competência para outros caminhos. É bom lembrar que nessa sociedade moderna líquida a maneira padronizada de comunicação inter-humana, como diz o sociólogo Zygmunt Bauman, é uma mensagem por celular. E a duração da amplitude da atenção humana é o término da mensagem, quando as pessoas se dão ao trabalho de envio. Porque em grande parte, muitos preferem usar o seu tempo e a sua energia com likes e apreciação das curtidas virtuais. Não quero dizer com isso que as ferramentas digitais, as mídias sociais não tenham a sua importância, sobretudo, em tempos de pandemia e isolamento físico, que, aliás, foram e estão sendo ressignificadas. O mundo virtual tem seu lugar social, sua importância e sua imensa validade, embora precisemos ponderar o excesso desse uso e formas de utilização.

Uma das primeiras vítimas da arbitrariedade do momento, da vida apressada e maciçamente digital, é a linguagem. Não se dedica mais tempo para dialogar, para se expressar, para interação Inter-humana. As relações interpessoais ficam a dever a memória humana, as lembranças, o afeto. Não se tem mais interesse e nem tempo de se perguntar como está cada um de nós, e não existe a preocupação em compartilhar como estamos nas trilhas da vida, embora se encontre tempo para uma curtida nas mídias digitais, de veiculação de mensagens nos grupos de WhatsApp, ou um passeio pelo Instagram/Faceboock. Esses são alguns dos esforços reflexivos que estamos praticando, sem nenhum crivo moralista ou de juízo de valor, ao contrário, é um sentimento de retorno a nossa verdadeira essência.

Eu penso em interações ancestrais, como sentar em roda, que nos mostram a força do grupo e a nossa interdependência. Isso quer dizer que ao vivenciarmos os diálogos, as escutas, verificamos que dessa forma somos gregários, que muitos saberes se desenvolvem nesses espaços, não há separatividades. Em contrapartida, como afirma Bauman (2014, p.71), a “sociedade confessional promove a autoexposição pública ao posto de principal e mais disponível das provas da existência social, assim como a mais possante e a única eficiente”, mesmo que essas exposições e visibilidades custem a perda de si, causem adoecimentos e comprometam as nossas humanidades.

Para a filósofa Hannah Arendt (2019, p.39), na obra a “Condição Humana”, diz que a “era moderna representa não apenas uma inteira transformação na articulação tradicional entre as atividades humanas, mas também uma profunda alteração da natureza das próprias atividades”. Arendt afirma que a marca do mundo moderno é a indistinção entre a esfera social dos domínios público e privado. Assim, a esfera social assume um domínio híbrido em que os” interesses privados assumem importância pública”. A filósofa faz uma crítica contundente a essa indistinção da vida privada/pública e diz: “O advento da esfera híbrida como a social acaba por promover uma indistinção entre os domínios público e privado e o deslocamento de princípios de uma esfera a outra, constituindo-se como uma interseção, minando a possibilidade de felicidade pública ou privada”.

Nessa direção, é importante pensarmos sobre o que faz nós, seres humanos, promovermos essa hibridização entre os interesses privados e públicos. Que movimento humano acontece quando milhares de pessoas expõem no Faceboock, Instagram, nas demais mídias sociais, aspectos mais íntimos de suas identidades, de seus sentimentos, de seus gostos, de seus desejos e conquistas? Será que estamos nos reportando a busca por interações humanas, pela necessidade de presentificação do humano e de busca por sentido pela vida?

Será se o cogito atualizado de Descartes: “Sou visto, logo sou” é a tentativa de buscar a conciliação com a essência do ser, que tão bem reflete o filósofo Heidegger quando diz que o ser é a morada da essência do humano. Para contribuir com essa nossa reflexão, vou trazer também o filósofo Byng-Chul Han (2017, p.23; 25) em sua obra “Sociedade do Cansaço”, ao afirmar que a sociedade atual não é mais a “sociedade disciplinar”, mas a “sociedade do desempenho”. Chul Han diz que na sociedade disciplinar, tanto discutida por Michel Foucault, em Vigiar e Punir (1987), as pessoas, quando se negam a seguir a normalização identitárias, correspondente a essa sociedade, vão produzir pessoas “loucas”, “delinquentes” e desviantes, enquanto a sociedade do desempenho vai produzir, para aqueles que não se adequam a esse modelo de sociedade, pessoas depressivas, adoecidas, entristecidas, frustradas e fracassadas.

Nessa mudança de paradigma da sociedade disciplinar para a sociedade do desempenho, como nos lembra, ainda, Chul Han, é o “inconsciente coletivo” já estar imbuído da aspiração de máxima produtividade. O sujeito da sociedade do desempenho comumente se sente exaurido pelas múltiplas atividades, funções e papéis sociais que precisa desempenhar com máxima eficiência e em tempo recorde. Ocorrem adoecimentos em grande escala diante da necessidade de mostrar um desempenho satisfatório para ser visto, aceito e ter um lugar nessa sociedade. A liberdade condicionada que leva as pessoas a um esgotamento emocional e físico termina por levar a uma constante insatisfação de ser ele mesmo. Há uma descaracterização de si mesmo em nome de ter um desempenho cada vez mais eficaz em um contexto socioemocional que compromete as autoestimas.  Surgem pessoas que não gostam mais de si mesmas, desejando ser outras pessoas. Daí ocorrem os adoecimentos e as fugas de si, dos outros e da vida.

Dessa forma, ocorre o distanciamento não só das outras pessoas, mas também de si mesmo. Surgem as angústias, ansiedades, inseguranças e ideias de fracassos, porque não se atingiu aquele ideal propagado pela sociedade do desempenho e o ser humano implementa conflitos internos, porque ainda não alcançou o Shangri-la, esse lugar idealizado, paradisíaco, inalcançável para muitos, quiçá exista para alguém, mas não impossível de mensurá-lo. Seria esse o retorno a nossa real essência humana? Então, deixemos cair as máscaras viciosas do superficial que nos aprisionam nos subterrâneos de uma ilusão e alcancemos a beleza de nossa essência interior e reconheçamos o nosso verdadeiro SER que vive e pulsa vibrante em nós.

Assim, nessa busca pelo retorno de nós mesmos, precisamos implementar uma tarefa urgente para a manutenção da nossa vida, das nossas relações e da humanidade. É nessa direção que faço um convite de empatia para que possamos desenvolver um esforço coletivo,e seguir um percurso empático, visando construir uma sociedade humanista, onde o mais valoroso seja a vida humana, a nossa felicidade e a dos demais seres humanos.

À guisa de finalização, me despeço com uma poesia de João Doederlein, (2017, p. 82), em “O Livro dos Ressignificados”, ao nos lembrar que: “ Empatia (s.f.) não é sentir pelo outro, mas sentir com o outro. É quando a gente lê o roteiro de outra vida. É ser ator em outro palco. É compreender. É não dizer ‘eu sei como você se sente’. É quando a gente não diminui a dor do outro. É descer até o fundo do poço e fazer companhia para quem precisa. Não é ser herói, é ser amigo. É saber abraçar a alma. ”

*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Escreve às quintas-feiras.

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