Os (des) encantamentos pela vida em tempos de pandemia

Por

Vera Lúcia Braga de Moura*

Em 23.07.2020

Estamos vivenciando um momento muito propício para refletirmos sobre o significado da vida. Geralmente, encaramos os desconfortos que nos chegam como algo ruim. Mas, para além dos sentimentos de frustração, raiva, decepção, medo, tristeza, ansiedade e, também, os desafios que a vida nos impõe, como, por exemplo, a COVID19, podemos pensar e ressignificar nossas ações nessa pandemia. Serão esses tempos o anúncio de uma crise humana, de valores, de sentimentos, de ações que aviltam contra as nossas humanidades?

Qual o sentimento de mundo diante de nossas (in) coerências? Diante de situações que não encontramos respostas e nem soluções, a priori, o mais indicado, certamente, será ampliarmos a forma de enxergar as nossas relações, consigo mesmo, com as outras pessoas, com a vida em sociedade e com o mundo. Para alcançarmos esse equilíbrio é necessário treinarmos a nós mesmos e a vivência pode ser uma boa professora. Aprendermos a nos observar e o nosso entorno. Como reagimos diante das adversidades e dilemas humanos? Um aspecto importante é que tudo é transitório. Basta olharmos para trás e rememorarmos a nossa infância, as nossas brincadeiras, amizades, os nossos sonhos, o nosso corpo, e então veremos melhor o quanto tudo muda, consequentemente, entenderemos que a base da vida é a impermanência.

Como respondemos às questões que surgem nas nossas vidas? Como agirmos em tempos de pandemia, sobretudo, no distanciamento físico? É importante que nessa nossa reflexão entendamos a importância de enxergarmos a nós mesmos de forma transitória e flexível. Considerando que não existe solidez, comumente nutrimos um anseio por segurança, numa perspectiva ilusória de suplantar algo que nos traz conforto, seja afetivo ou material e, como reflexo dessa situação enseja-se,  também, algum tipo de sofrimento, pois, como tudo muda, não temos como reter as coisas, as pessoas, como se fossem congeladas no tempo e passassem a existir em consonância com nossa forma de ver e enxergar o mundo, fato esse que depende da perspectiva e conceito de mundo de cada ser. Dessa forma, precisamos aprender a seguir o ritmo da vida da forma que se apresenta para nós e, como eternos aprendizes, também mitigar e compreender os reveses do outro, dentro do seu mundo.

Somos frágeis e a pandemia mostra bem isso.

Outro ponto que vale a pena compreendermos é a nossa vulnerabilidade diante da vida. Somos frágeis e a pandemia mostra bem isso. Com isso, não quero dizer que não somos fortes, ao contrário, existe muita gente aguerrida, corajosa, lutadora, mas, mesmo com esses atributos, somos também efêmeros, apenas passageiros na vida, tema para outra reflexão.

Essa condição humana de transitoriedade nos mostra, também, as (in) certezas da caminhada, o que é prudente aprendermos a não criarmos expectativas, pois não existe solidez, fixidez nas coisas e nem nas relações. Épicteto, filósofo, romano do estoicismo, foi escravo e liberto pelo seu brilhantismo intelectual na Roma Antiga. Elaborou o primeiro manual escrito no Ocidente para se viver uma vida o melhor possível. Na sua obra “A Arte de Viver”( 2018), Épicteto traz a abordagem de viver uma vida de forma mais leve, aprender a pensar com clareza sobre si mesmo e sobre o seu relacionamento com os demais membros da comunidade humana. O pensador estoico diz ainda que existem coisas que estão sob o nosso controle, como nossas opiniões, aspirações e outras não estão no nosso controle, como, por exemplo, a forma como os outros nos veem, o advento de uma pandemia etc.

Assim, tentar mudar situações que não estão no nosso controle só nos causam aflição e sofrimento, e, ainda digo mais, penso que a questão não é controlar, mas entender o que chega nas nossas vidas e acolher a experiência, porque controle lembra repressão, impedimento e isso também causa sofrimento. Talvez o mais assertivo seja compreendermos as nossas experiências, todas elas, e entender que existem coisas que dependem de nós e outras que não dependem da nossa vontade, mas que precisamos acolher. Devemos ser resilientes, aprender formas de enxergar e vivenciar a vida de modo que não machuque a nós próprios, muito menos a outrem.

A ideia é estarmos questionando a nós e a vida, não ter visões fechadas e absolutas, pois estamos constantemente mudando. Como seres inconclusos e inacabados, estamos em permanentes aprendizagens. Nessa dimensão dos nossos inacabamentos, é salutar observarmos, também, a perspectiva da interdependência. Não somos uma ilha. `Vivemos, porque nos apoiamos uns nos outros. Somos seres relacionais, estamos sempre nos relacionando com alguém, com o mundo, com a vida. Se pensarmos e introjetarmos a ideia de unicidade e conectividade veremos que não existe EU e o Outro, mas nós em permanente conexão. Dessa forma, passamos a ver todos como parte fundante de cada um e, consequentemente, teremos relações mais saudáveis, respeitosas, afetuosas, amorosas e humanistas.

Paulo Freire (1979, p.29) diz na sua obra “Educação e Mudança” que “o amor é uma tarefa do sujeito”.  E também, que “o amor é uma intercomunicação íntima de duas consciências que se respeitam”. O conceito de amor de Freire mostra essa nossa interdependência.  O amor é um caminho possível e viável para aprendermos a nos relacionar com as situações adversas que se apresentam no nosso cotidiano, sobretudo, nesse momento de pandemia com tantos (des) encantos, perdas afetivas, físicas, socioeconômicas, inseguranças e mais incertezas.

Diante da pandemia, mesmo considerando a transitoriedade da vida, muitos de nós continuam apegados ao passado e aspiram que a vida volte ao “normal” e, consequentemente, a ser como antes. Nada será como antes, porque a essência da vida é transitória, mesmo que reproduzamos crenças, valores, ideias, ações semelhantes a comportamentos cristalizados na nossa memória, mesmo com essas permanências, nossas práticas serão diferentes, porque não somos mais os mesmos do momento anterior. Algo em nós e em nosso entorno mudou. As nossas conexões, interações, leituras, experiências já nos tornam outro ser humano.

O filosofo grego Heráclito de Éfeso desenvolveu o pensamento no século VI a. C., na Ásia Menor, que tudo é um “vir a ser”, e que tudo se transforma num processo permanente. O pensador grego compara essa ideia da transitoriedade da vida como um rio; “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”, pois quando se entra no rio novamente, não se encontra nele as mesmas águas e o ser humano já não é mais o mesmo, outras experiências já o tornaram outra pessoa.

Dessa forma, por não termos esse entendimento com mais clareza, nos apegamos a situações, a pessoas, a coisas e, nessa direção, sofremos quando não conseguimos conquistar aquilo que nos causa bem-estar, conforto, alegrias.

Assim, nesse contexto de distanciamento físico de pandemia, podemos buscar outros caminhos para trilhar, baseados em convivências éticas, compassivas, amorosas, respeitosas, interativas. Desprender-se do passado é algo importante. Não me refiro a deletar a nossa memória, até porque é impossível, nossas lembranças são inventários humanos, nosso acervo descritivo que nos ensina o quanto avançamos, recuamos, sonhamos, sorrimos, amamos, aprendemos, choramos, caímos, levantamos, frustramos, tivemos experiências em suas múltiplas dimensões, mostrando que a trajetória humana não é uma linha reta e, sim, um labirinto incrível que pode ter a estética que nós lhe atribuímos.

O sonho e a esperança que podemos nutrir podem nos mostrar o quanto a vida é um campo de possibilidades. As mudanças já iniciam com a capacidade de sonhar. Quando idealizamos e desejamos já estabelecemos um planejamento mental. A esperança é outro sentimento importante para pensarmos o momento presente e a vida de forma geral. Esperançar, como nos lembra Paulo Freire. O pensamento de Freire nos ensina que devemos esperançar, e em conjunto fazer o movimento para que as coisas aconteçam, para que aquilo que entendemos como adequado para nos tornamos seres humanos melhores, que façamos o movimento de encontros, de colocar o ser humano no centro da vida, num movimento dialógico de alteridade. Que amemos mais e consumamos menos. Que aprendamos com essa pandemia a ter uma vida mais simples. Que nos reencantemos pela vida, por nós mesmos, pelo outro, pela humanidade. Que sejamos empáticos, como premissa para vivermos melhor.

Se todos nós mudamos e hoje não somos os mesmos de ontem, que enxerguemos o outro como esse ser humano que sofre constantes mudanças e que, também, busca a felicidade e foge do sofrimento. Apenas os caminhos são diferentes dos nossos, mas isso não significa que devamos excluir o outro. Faço um convite para enfrentarmos essa pandemia fazendo acordos humanitários. Acordos de vida, para que aprendamos a viver em rede, desenvolvermos convivências afetuosas, respeitosas, que aprendamos a arte do trabalho coletivo e colaborativo, em que uns se importam com os outros, e estabelecem uma sinergia de encantamento pela comunidade humana.

*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História.

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