MSF atua para simplificar diagnóstico e tratamento da desnutrição no Níger

Por

Médicos Sem Fronteiras

Em 06.08.2020

Consultora de nutrição, Béatrice Mounier explica como pandemia pode tornar a situação ainda mais grave no país

Béatrice Mounier acaba de passar várias semanas no Níger, onde o início da estação chuvosa e a lacuna alimentar resulta em níveis extremamente altos de desnutrição e malária. Trabalhando em parceria com o Ministério da Saúde, de junho a outubro, as equipes de Médicos Sem Fronteiras redobram seus esforços para enfrentar o pico sazonal e tratar milhares de crianças, enquanto continuam tentando desenvolver abordagens mais descentralizadas e simplificadas.

O trabalho de Béatrice concentrou-se no que precisa ser feito para simplificar o protocolo nacional para o manejo da desnutrição aguda. Ela discute as questões que envolvem abordagens simplificadas e os desafios do pico de desnutrição e malária, que, por causa da pandemia de coronavírus, podem ser particularmente graves este ano.

O que se entende por “abordagens simplificadas”? Quanto progresso foi feito com sua implantação no Níger?

Existem vários passos importantes para simplificar a maneira como a desnutrição é diagnosticada e tratada, particularmente no Níger, que tomou muitas iniciativas nesse sentido. Em primeiro lugar, a introdução de alimentos terapêuticos prontos para uso tornou possível tratar muito mais crianças fora do hospital desde meados da década de 2000. O foco na prevenção foi outro marco recente, incluindo o aumento do acesso durante o ano inteiro aos serviços pediátricos e o envolvimento de famílias e agentes comunitários de saúde no diagnóstico e tratamento da desnutrição.

No entanto, a taxa geral de desnutrição aguda em crianças menores de 5 anos de idade permanece acima do limiar de emergência de 10% e, a cada ano, uma média de cerca de 400 mil crianças são tratadas por desnutrição aguda grave nas unidades de saúde do país. Responder a essa emergência crônica que afeta um número tão grande de crianças exige o que chamamos de abordagens simplificadas, ou seja, adaptar protocolos e programas de nutrição para poder estender o tratamento a crianças mais desnutridas, mantendo a qualidade dos cuidados. Não existe um único protocolo simplificado, mas uma série de abordagens que foram testadas em pesquisas ou durante respostas a emergências.

O atual protocolo nacional do Níger para o gerenciamento da desnutrição aguda segue as recomendações da Organização Mundial da Saúde que estabelecem três critérios para avaliar o estado nutricional de crianças menores de 5 anos – razão peso/altura, medição MUAC (circunferência do braço), e presença de edemas (inchaços provocados pelo acúmulo de líquido). Várias organizações, entre elas a ONG Alima, realizaram pesquisas para simplificar e racionalizar os critérios no Sahel*, e muito mais está em andamento. Os resultados da pesquisa sobre o uso da medida MUAC (ou seja, abaixo de 125 mm) e a presença de um edema como critério para diagnosticar desnutrição aguda são encorajadores, e MSF e outras organizações gostariam de ver o protocolo nacional do Níger adaptado a esses dois critérios, em vez de três atuais.

Primeiro, a fita da circunferência do braço (MUAC) é mais fácil e rápida de usar do que um medidor de altura e peso. Também possibilita que a triagem seja feita nas famílias e comunidades, o que permite que mais crianças se beneficiem. Diagnosticar um número maior de crianças desnutridas significa um tratamento mais precoce e abrangente, a fim de ser mais eficaz na prevenção da deterioração da saúde da criança e evitar a necessidade de hospitalização. E segundo, estudos sobre a correlação entre antropometria e mortalidade mostraram que o MUAC é uma medida mais precisa do que a razão peso/altura para detectar crianças com maior risco de morrer, que são o foco principal de programas em emergências nutricionais, como os vistos durante os picos sazonais no Sahel.

Porém, adaptar um protocolo é um processo de longo prazo que deve ser promulgado antes do pico sazonal. Também envolve vários interessados – ministérios nacionais, agências da ONU, doadores institucionais, etc. O processo já levou vários anos, mas ainda não está finalizado. Também existem questões não resolvidas e várias partes interessadas, como o Departamento de Nutrição do Níger e o Programa Mundial de Alimentos, que mostram certa relutância. “Simplificar não é tão simples quanto parece!” Além disso, há a pandemia de COVID-19 que está atrapalhando todo o setor da saúde.

Em termos práticos, quais seriam as vantagens e desvantagens em potencial de mudar para um protocolo usando apenas a circunferência do braço e a presença de edemas para diagnosticar desnutrição em crianças no Níger?

Como eu disse anteriormente, as principais vantagens são facilitar e abrir a triagem e o manejo da desnutrição aguda, oferecendo tratamento de qualidade e garantindo que as crianças com maior risco de morrer sejam atendidas. Tratadas em um estágio inicial, as crianças desnutridas são mais propensas a se recuperar e evitar complicações que, de outra forma, resultariam na internação em condições críticas no hospital. E cada vez mais mães usam pulseiras MUAC para medir seus filhos e verificar a deterioração de seu estado nutricional. Mães e sistemas de saúde usando o mesmo indicador representariam um passo à frente, pois as famílias teriam um meio mais proativo de monitorar a saúde de seus filhos e seriam capazes de tomar as medidas necessárias no caso de um alerta.

A implementação de um protocolo simplificado baseado principalmente na circunferência do braço médio (superior a 125 mm) dobraria ou até triplicaria o número de crianças capazes de se beneficiar de programas de nutrição. Por um lado, isso seria uma vantagem distinta, pois todas essas crianças precisam de suplementos alimentares, mas, por outro, uma grande desvantagem, pois significa ter mais medicamentos e alimentos terapêuticos prontos para uso. Portanto, em termos de suprimento e financiamento, existem alguns desafios muito concretos já que os centros de saúde sofrem regularmente com a escassez de suprimentos e doadores internacionais, como o ECHO, parecem cada vez menos inclinados a financiar programas pediátricos e de desnutrição na região.

O risco de crianças desnutridas, que teriam sido admitidas com o protocolo existente, não conseguirem atendimento imediato na rede com o novo protocolo, mais simplificado, precisa ser avaliado. Observações preliminares do nosso programa médico-nutricional em Madarounfa, no distrito de Maradi, em 2019, sugerem que o novo protocolo não criaria lacunas significativas, mas isso é algo que ainda precisa ser confirmado. A falta de estudos conclusivos na região explica de alguma maneira a relutância em fazer alterações nos protocolos existentes e, lamentavelmente, devido à pandemia da COVID-19, dois estudos em andamento foram suspensos.

Como a pandemia do COVID-19 está impactando as discussões sobre a simplificação do manejo da desnutrição? E, de maneira mais geral, como isso afeta a atual situação nutricional?

Ainda há muita incerteza sobre como a COVID-19 afeta crianças desnutridas com sistema imunológico enfraquecido. Também é difícil prever em que medida a pandemia e as medidas tomadas para combatê-la exacerbarão o próximo pico de desnutrição e malária. As autoridades do Níger estimam que o número de crianças que sofrem de desnutrição aguda grave aumentará 30% este ano devido aos danos colaterais que a pandemia está causando aos serviços de segurança alimentar e de saúde.

A desaceleração econômica e o aumento dos preços (por exemplo, em maio de 2020, o milho custou 11% a mais e o sorgo, 9% a mais que em maio de 2019) resultaram em ainda mais instabilidade financeira para algumas famílias no Níger. A pandemia também interrompeu os sistemas de saúde e as atividades médicas essenciais para reduzir a gravidade do pico sazonal da malária estão sendo reorganizadas. As campanhas de quimioprevenção são um exemplo disso. Muitas vezes, combinando a triagem para desnutrição, é necessário administrar medicamentos antimaláricos em crianças menores de 5 anos de idade uma vez por mês durante a estação chuvosa, para ajudá-las a passar pelos meses do ano mais críticos para sua saúde. Este ano, as campanhas terão que evitar reunir grandes reuniões de pessoas em locais onde há casos de coronavírus e adotar uma estratégia de porta em porta, que leva mais tempo e requer mais recursos em termos de pessoal e logística. Além disso, com a maioria dos preparativos sendo feitos por videoconferência – um meio de comunicação claramente inacessível em todos os lugares do Níger – e não diminuindo a pressão global sobre cadeias de suprimentos e transporte, as condições para o estabelecimento de atividades tão vitais para mitigar a os estragos causados pela desnutrição e pela malária são extremamente desafiadores.

Em relação mais especificamente à questão do protocolo para rastrear e gerenciar a desnutrição aguda, há outro benefício em simplificá-lo usando principalmente a medição do MUAC durante a pandemia de COVID-19. Como as instalações médicas precisam reforçar os procedimentos de prevenção e controle de higiene e infecção, a medição da proporção peso/altura das crianças aumenta o uso de várias ferramentas, o que, por sua vez, aumenta o risco de transmissão do vírus. Enquanto medidores de altura, balanças e outros instrumentos devem ser desinfetados entre cada criança, a fita MUAC pode ser usada pela pessoa que acompanha uma criança na presença de um profissional de saúde, o que não apenas economiza tempo, mas também ajuda a limitar o risco de infecção. Por exemplo, no programa médico-nutricional de MSF em Madarounfa em 2019, prestamos atendimento a aproximadamente 17 mil crianças, examinando cada uma delas uma vez por semana durante mais de um mês. Pesamos crianças 85 mil vezes. Imagine quanto tempo teríamos economizado se usássemos fitas MUAC para monitorar seu estado nutricional!

*O Sahel é uma faixa de 500 a 700 km de largura, em média, e 5.400 km de extensão, entre o deserto do Saara, ao norte, e a savana do Sudão, ao sul.