A escola interditada

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 10.08.2020

O vírus surgiu no Brasil ao final de fevereiro, embora alguns estudiosos afirmem que o mesmo já era presente durante o carnaval. Daí pra frente passamos a viver noutro mundo, sem a lógica dos modelos estabelecidos e com  rupturas em todos os aspectos da nossa vida. Houve até quem dissesse que sua passagem era apenas uma gripezinha e bastava ter um corpo atlético para não sofrer consequências.

Hoje, mais de 100 mil mortos em cinco meses.

Pois bem, fomos tomados de surpresa. Mudou o mundo, mudou a vida de todos, atingindo a base da sobrevivência, com famílias ameaçadas pelo desemprego e pela falta da proteção institucional. Alguns entenderam logo o que estava acontecendo, mas boa parte da população, após cinco meses de pandemia, ainda não conseguiu acessar novos eixos da sabedoria e perceber que quando o redemoinho passar, outras regras pra vida nos serão impostas. Além do aprendizado intensivo para a manutenção de uma boa higiene.

Entre todos os impactos enfrentados pela sociedade brasileira, dois considero de maior vulto. A aceleração do desemprego e a interdição das escolas. Nem falo do encolhimento da economia, porque o desemprego fala por si só. Sem força de trabalho ativa o crescimento é limitado.

Crianças e adolescentes logo assumiram os novos formatos encontrados pelas secretarias de Educação para que o processo de aprendizagem não fosse interrompido com o fechamento dos espaços escolares. Uns com maior facilidade e outros com imensas dificuldades, desde a participação das aulas online, o uso dos computadores, as práticas, os métodos utilizados. Podemos dizer que tudo isso é novo para alunos e professores. As escolas públicas brasileiras têm pouca familiaridade com o uso da tecnologia no processo de ensino/aprendizagem.

Imaginemos que professores transformaram suas casas em “home offices” apressados e que tiveram de improvisar aulas para turmas de duas ou três escolas diferentes, o que acontece com professores que trabalham no tempo de 40 horas semanais. São poucos os que já têm a experiência de praticar o ensino à distância.

Acontece que para muitas crianças e jovens, a escola já vinha sendo interditada, quer pela evasão escolar, quer pelo baixo nível de aprendizado e até mesmo pela falta de vagas.

Há muito tempo conhecemos as deficiências da nossa Educação e a profunda desigualdade do nosso sistema educacional, que vão desde a infraestrutura da sala de aula, do modelo de carteira e até da ausência dela, o tipo de material didático, a qualidade da alimentação escolar e, sobretudo, da formação dos professores e outros profissionais. É comum ao percorrer o país se encontrar estados e municípios com nítidas diferenças entre as escolas públicas que atendem os filhos dos mais pobres e as que atendem as famílias mais “remediadas”. Eu tive a oportunidade de observar a situação de desigualdade entre as escolas públicas quando era presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME).

Um sistema de educação que não define e mantém um padrão mínimo de atendimento aos alunos, tem também muita dificuldade de concorrer em avaliações que são feitas sob padrões internacionais, como o PISA.

As facilidades ou dificuldades vivenciadas pelos alunos neste momento estão relacionadas ao processo vigente nas escolas, instrumentos utilizados, metodologias praticadas, como também as suas experiências familiares e comunitárias. Com a imediata adoção de aulas não presenciais através de computadores e redes de comunicação, foram mais favorecidos os que já tinham possibilidades do uso destes instrumentos na escola ou na família e até mesmo nas “lan house”. Como também aqueles que durante o aprendizado foram incentivados por metodologias que priorizam o desenvolvimento da pesquisa.

Neste ponto se cruzam os males originados pelo desemprego ou desocupação em massa, pelo fechamento das escolas e pela leniência dos dirigentes políticos para com a Educação no país. Quem sofre mais são as famílias que têm menor condição de fazer mudanças radicais em suas vidas sem o apoio governamental e alunos que já apresentam dificuldades em seu processo de aprendizagem.

Qual a constatação maior? Quem já tinha dificuldade de aprender, agora aprende menos ainda. Quem tinha dificuldade de passar de ano, pendurado em avaliações falaciosas, vai continuar com a defasagem.

É claro que todos querem que a vida volte ao normal, mas todos também se perguntam sobre qual tipo de normalidade.

No pico mundial da crise, em meados de abril, mais de 1,5 bilhão de alunos, em 195 estados membros da Organização das Nações Unidos (ONU) foram afetados pelo fechamento de escolas, segundo a Unesco. Isso significa que mais de 90% dos estudantes em todo o mundo tiveram seus estudos afetados pelo avanço do novo coronavírus. No Brasil, mais de 47 milhões de alunos e 130 mil escolas interditadas.

No mundo da Educação não podemos raciocinar somente com o olhar do mercado. É preciso entender que estamos lidando com vidas de crianças e jovens que devem ser protegidas como prioridade absoluta, como, aliás, asseguram nossa Legislação.

“A prioridade é a vida dos estudantes, dos educadores e do pessoal de apoio pedagógico e administrativo. No cotidiano das escolas, o encontro é próximo, numeroso, constante. Aliás, o encontro é aqui um elemento fundamental e incontornável. A interação, a proximidade, a linguagem não verbal são intrínsecas ao processo de ensino-aprendizagem. E se tivéssemos a coragem de optar por um ensino remoto que deixasse um pouco de lado a overdose digital, privilegiando a leitura como eixo de todo o aprendizado (conteúdo, sim, mas sobretudo as competências preconizadas pela BNCC, a Base Nacional Comum Curricular), aproveitando a grande oportunidade de tornar nossos alunos (e professores) leitores da melhor qualidade?”.(Gabriel Perissé, doutor em filosofia USP)

Porque mandar alunos para a escola agora, quase ao final do ano letivo, e quais os benefícios que teremos convivendo com situação tão complexa? Outros países, como Israel, fizeram a volta às escolas sem controle do vírus e os resultados foram bastante negativos. A situação de contágio se ampliou.

Entendo que é o momento para reunirmos todos as forças políticas, acadêmicas e pedagógicas para fazermos uma reorganização do nosso sistema educacional e fazer na prática o que se tem dito desde Anísio Teixeira, Nísia Floresta, Cecília Meireles, Darcy Ribeiro,  Florestan Fernandes, Demerval Saviani, Miguel Arroyo, Cristovam Buarque e tantos outros que têm refletido sobre a Educação no Brasil e apontado caminhos para que se tenha de fato uma escola pública, gratuita, laica, inclusiva, com métodos e técnicas comprometidos com o futuro,  com a qualidade necessária e abrangente  para melhorar a vida de todos os brasileiros. “À medida que o mundo enfrenta níveis insustentáveis de desigualdade, precisamos da Educação – o grande equalizador – mais do que nunca”, aponta Guterrez/ONU.

É preciso sobretudo redefinir os espaços de aprendizagem e a valorização dos professores, de modo que possam contemplar as exigências para que aconteça o ensino de qualidade que contribua para o equilíbrio entre a segmentação social. “O que a sociedade demanda atualmente expressa-se aqui como a possibilidade de o sistema educacional vir a propor uma prática educativa adequada às necessidades sociais, políticas, econômicas e culturais da realidade brasileira, que considere os interesses e as motivações dos alunos e garanta as aprendizagens essenciais para a formação de cidadãos autônomos, críticos e participativos, capazes de atuar com competência, dignidade e responsabilidade na sociedade em que vivem.” (Parametros Nacionais Curriculares)

A ONU fala em ser necessário redesenhar as políticas educacionais, proteger e ampliar os orçamentos para essas políticas e fazer um esforço para que cheguem até “os mais difíceis de alcançar”.

No Brasil não seria pedir muito para tentar equilibrar a  desigualdade social que nos ameaça.

Não devemos mandar nossas crianças e adolescentes às escolas sem que se tenha a vacina.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.