Entre o superficial e o essencial – o toque de ouro de Midas

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 12.08.2020

O francês Gabriel Marcel (1889 -1973), considerado o primeiro filósofo existencial da França, define como forma de distinção da vida aquilo que se tem e aquilo que se é. Desse modo, a distinção ocorre entre o plano do ter e o plano do ser. Para Marcel, o ter é tudo aquilo que é objetivável, é a coisificação do ser, é o lugar do desespero. O ser é anulado na medida em que o ter acentua a si mesmo em detrimento do ser. Para que isso não ocorra, o ser deve orientar o ter, fazendo dele instrumento para o ser, pois o ser, para ele, é participação, é amor, é esperança. O plano do ter é o espaço da possessividade e quanto mais o ser humano acumula, mais possuído ele será pelas coisas, tornando-se escravo da acumulação e dos objetos, num progressivo esvaziamento espiritual.

Numa perspectiva contrária, o plano do ser, para Marcel, é o lugar da afirmação autêntica do ser humano, pois é marcado pelas experiências pessoais e de intimidade consigo, que faz com que o ser humano encontre a si mesmo, mas também pela presença do outro, pois, para ele, Ser é “ser com”. Não há existência autêntica no isolamento. O plano do ser é o lugar do acontecimento do amor. O desespero surge como uma condição normal no mundo do ter, mas o mundo do ser se afirma, de forma plena e revigorante, pela esperança, como acentua Gabriel Marcel. Para esse filósofo, a prevalência da racionalização científica é uma forma de dificultar a concretização do plano do ser, pois o ser humano está permanentemente ameaçado pela técnica, pela razão científica, que classifica tudo, inclusive o próprio ser humano, entre o que é útil e o que é inútil e isso faz com que a sociedade fique cada vez mais sobre a instância do ter (NOGARE, Pedro Dalle. Humanismos e anti-humanismos: introdução à antropologia filosófica. Petrópolis, RJ, vozes, 1994).

Os nossos dias, cada vez mais, estão carimbados pelo consumismo voraz, numa espécie de mantra apologético ao plano do ter. Com isso, sucumbe a nossa humanidade, que se entrega ao mundo das coisas, como se todas as necessidades para a materialização do nosso bem-estar fossem supridas pela aquisição dos bens que expressam uma utilidade prática e tangível. Consumir e acumular são marcas definidoras de quem necessita projetar um perfil que expresse rotatividade nas vitrines sociais. O negócio é não ficar encalhado no canto da prateleira. A rotatividade é sinal de que há um movimento de vida que pulsa e que é alimentado pelas cifras que cabem em cada cartão de crédito. O negócio é fazer circular essa energia monetária que tudo pode e que coisifica tudo, inclusive as pessoas.

Parece haver um jogo de cartas bem marcadas entre o superficial e o essencial. Mas a questão é que cada jogador pode definir a sua regra para entrar nesse jogo e essa definição está vinculada a outro jogo, que é o jogo de interesse que mobiliza cada ser vivente nesse caminho bifurcado entre a prudência e a precipitação, entre a ganância e o desapego, entre o ter e o ser. A sabedoria dos antigos pode ser um profícuo caminho de ensinamentos para nos conduzir em nossas vidas de forma mais altruísta e colaborativa. Podemos buscar nas diversas mitologias, como a grega, a nórdica, a africana ou a brasileira, para citar algumas, ensinamentos profundos para as nossas vidas, que vão além de seu valor histórico e estético. As mitologias reúnem narrativas espetaculares de ensinamentos que podem nos conduzir melhor em nossas vidas, inclusive para nos fazer perceber caminhos e ter mais discernimento entre o que é superficial e essencial.

Encontramos na mitologia grega uma narrativa exemplar para ilustrar essa situação de descomedimento tão comum nos dias de hoje e na vida de tantas pessoas: o Mito de Midas. Os gregos antigos criaram um conceito para a palavra hybris que expressa o sentido de desacordo, descomedimento, presunção, arrogância, orgulho exagerado. Na mitologia grega a hybris é uma forma de colocar a harmonia e a justiça que sustentam a ordem cósmica em ameaça. Desse modo, vamos entender um pouco de que forma Midas coloca a harmonia cósmica em perigo, ameaçando a própria existência dele e dos outros. Aliás, vale traçar um paralelo entre a atitude de Midas e a nossa atitude se tomarmos como alerta o verso de Caetano Veloso: “da força da grana que ergue e destrói coisas belas”.

Midas é um rei muito mais conhecido pelas suas atitudes lentas e idiotas. Pouco usa o raciocínio, o que muitas vezes o coloca em situações vexatórias. Não se sabe ao certo, mas dizem que é filho de uma deusa com um mortal. Para entender melhor a nossa narrativa, vamos falar de Sileno, que é um deus classificado na segunda categoria de divindades, muito embora seja filho de Hermes, um deus importante.  Sileno tem uma aparência amedrontadora: muito pesado, careca, barrigudo; nariz completamente achatado e orelhas peludas e pontudas como de um cavalo. Por outro lado é muito inteligente e sensato, ao ponto de Zeus responsabilizá-lo pela educação de seu filho Dionísio. Com o passar do tempo, Sileno fica amigo do jovem aluno Dionísio, que é o deus do vinho e da festa. Certo dia, em uma dessas festas grandiosas feitas por Dionísio, Sileno, que normalmente exagerava do precioso líquido etílico, fica absolutamente bêbado e trôpego pelas ruas, é preso pelos guardas e levado ao rei Midas, possivelmente para uma punição.

No entanto, Midas reconhece Sileno de algumas festas com Dionísio e não querendo problemas com o deus do vinho, manda soltá-lo e ainda lhe oferece uma festa com duração de dez dias e dez noites. Com o passar desses dias, Midas leva Sileno para o poderoso deus Dionísio, que agradecido, oferta-lhe a possibilidade de escolher a recompensa que quiser. É aí, que o rei Midas demonstra toda a sua hybris e, ganancioso como sempre, de forma desmedida, pede a Dionísio que lhe dê o poder de transformar em ouro tudo que ele tocar. É assim que surge o toque de ouro de Midas.

Transformar plantas, pedras, água, animal, pessoas. Tudo vira ouro com o toque de Midas, que na volta para o palácio sai gritando aos quatros ventos que está rico, muito rico, o mais rico do mundo. Todo o seu palácio vira ouro e ele não se contém de alegria e felicidade. Mas essa felicidade desmedida tem seu triste fim no momento em que Midas se dá conta da tolice que praticara, fruto da sua ambição e de sua cobiça. Em sua plena alegria, pede que lhe sirvam vinho e comida. Ao pegar a taça de vinho e levá-la à boca, escorre dali um horrível gosto de ouro em pó; ao pegar a comida ela se transforma em ouro. O ouro pode ser maravilhoso, mas não sacia a sede e não mata a fome. Nesse momento, ele percebe a sua atitude impensada e começa a detestar todo o seu ouro. No entanto, Dionísio, que já tinha previsto esse acontecimento, gentilmente aceita retirar-lhe esse poder, que já era muito mais uma maldição, e pede que ele vá até a nascente do rio da cidade mais próxima e se banhe em suas águas, lavando ao mesmo tempo seu corpo e seu erro.

Pela sua avareza e descomedimento, Midas aprendeu que nem mesmo a maior fortuna do mundo lhe garantiria alegria e felicidade plena. Num plano geral, o mito do rei Midas nos dá esse ensinamento. Midas perdeu a noção e a clareza que distingue o superficial do essencial e, por isso, se perdeu também entre o ter e o ser, acreditando que a posse de todo ouro do mundo lhe daria uma vida de conforto e bem-estar. Contudo, importa fazer a reflexão de que a atitude de Midas colocou em ameaça a ordem cósmica, pois tudo que ele toca morre, torna-se inanimado. No tocante a isso tudo, talvez valha a pena trazer essa reflexão para as nossas vidas nos dias atuais. Até que ponto estamos ameaçando ou destruindo a ordem natural das coisas, quando degradamos a nossa casa, que é o nosso planeta. Quando ameaçamos ou exterminamos a existência de povos pela cobiça e avareza das especulações financeiras e imobiliárias. Quando pela arrogância e presunção nos sentimos melhores do que os outros e aniquilamos as suas singularidades e as suas diferenças. Quando, em detrimento do ter, excluímos todos aqueles que não se enquadram, segundo o nosso julgamento, em nossos parâmetros e perfis. Quando decidimos que o que importa é o sucesso e que a ética e o amor não passam de um detalhe cafona daqueles que já estão fora de moda.

FERRY, Luc. A sabedoria dos mitos gregos: aprender a viver II. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação e membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

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Foto destaque: toquedemidasjf.blogspot.com